– Relatórios comprometidos com a Acusação, que tornam a defesa dispensável e aniquilam o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa
No terceiro ponto da orbe cognitiva que caracteriza o Golpe, em primeiro lugar, o Relatório feito na Câmara dos Deputados é enganoso e apresenta fundamentação artificial, o que fere o direito à ampla defesa e ao contraditório. Em momento algum, salvo de forma factícia, o Relatório considerou e refutou os argumentos procedimentais e substanciais da Defesa. Como no Senado, o Relatório já estava pronto antes da instrução se encerrar, e há indícios fortes de que foi escrito por outra pessoa, como se viu na leitura que o Relator fez. A indicação do Relator e seu parecer foram duas, dentre tantas outras, das cartas marcadas pelo então Presidente da Câmara, o Controlador Geral do Impeachment.
Qual direito de defesa, então? Ainda será preciso assentar que a ampla defesa e o contraditório são impossíveis quando o julgador está comprometido com o acusador? Ou, para a perplexidade de

37 Odete Medauar, A processualidade no direito administrativo, ed. RT, São Paulo, 1993, p. 90.
todos, como nos lembra Karl Jasper, quando os interlocutores não estão sendo sinceros é possível uma discussão razoável?38 Temos para conosco que não.
Na qualidade de acusador, em razão da honestas et decus exigidas para o exercício da função39, o Relator estava obrigado a esclarecer na denúncia os indefectíveis elementos tópicos de Quintiliano: quis (quem?), quid (o que?), ubi (onde?), cur (porque?), quomodo (de que modo?) e quando (quando?). São os elementos indispensáveis na incessante batalha civilizatória contra o exercício tirânico dos poderes do Estado40. A denúncia não pode ser “obscura, vaga, inconcludente quanto a elementos causais da acusação.”41
Só a exposição clara e exata da res in judicium deducta dará à pessoa julgada, e aos demais jurisdicionados que acompanham o processo à distância42, as condições ideais para entender o caráter da imputação e, assim, oferecer uma defesa bem circunstanciada, condizente e apropriada, que demonstre que o acusado apreendeu corretamente todos os pontos da estrutura circular da compreensão fática e jurídica.
De acordo com o art. 41 do Código de Processo Penal43, a denúncia deve “conter obrigatoriamente os pressupostos da demanda: personae, causa petendi e res in judicium deducta.”44
Mas em momento algum da Denúncia é possível ver a descrição da relação antijurídica subjacente à responsabilidade política que

38 Karl Jasper, Introdução ao pensamento filosófico, tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, ed. Cultrix, São Paulo, 2006, p. 95.
39 Nas palavras de Piero Calamandrei, “Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do Ministério Público. Este, como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como um juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor da polêmica, a objetividade sem paixão do magistrado.” (Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, tradução de Ary dos Santos, Livraria, Clássica Editora, 4.ª, edição, Porto, 1971, p. 59).
40 Maria Luísa Malato, Manual anti-tiranos: retórica, poder e literatura, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009, p. 17.
41 Heleno Cláudio Fragoso, Ilegalidade e abuso de poder na denúncia e na prisão preventiva, Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, n.º 13, Ano IV, Abr.-Jun., 1996, Rio de Janeiro, p. 64.
42 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 20.
43 “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminosos com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.”
44 Heleno Cláudio Fragoso, Ilegalidade e abuso de poder na denúncia e na prisão preventiva, Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, n.º 13, Ano IV, Abr.-Jun., 1996, Rio de Janeiro, p. 64.
pretende imputar. Com o pretexto de que se trata de um “julgamento político”, sem se atentar para o significado da expressão desde a morte de Sócrates e da perseguição aos primeiros filósofos gregos, os propagandistas, ansiosos, se esqueceram que só um devido processo jurídico45 (legislativo, administrativo ou judicial) é capaz de gerar o direito à execução de uma pena que antes do processo não existia. Seja na responsabilidade criminal, civil, administrativa ou política, em qualquer circunstância, o processo e o julgamento são sempre jurídicos, pois têm a sua origem na lei.
No Relatório de acusação, temos a suposta quis, mas o que dizer de quibus auxiliis, quid, cur, quomodo, ubi e quando? A denúncia é uma peça retórica sem acuidade. Não nos responde às questões postas. Não é jurídica. É inepta, em sentido técnico. Não fornece as circunstâncias fáticas de caracterização dos deveres constitucionais descumpridos, o fundamento legal incriminatório em sentido estrito e a estrutura jurídica da responsabilidade política.
Atentar contra a Constituição é, pois, o ponto fulcral da responsabilidade política que leva ao impeachment e à revogação do mandato presidencial, segundo a Constituição brasileira. A definição do que é atentar contra à Constituição constitui, em primeiro lugar, o elemento necessário de pré-compreensão46 da estrutura jurídica da responsabilidade política. E, no plano concreto, em segundo lugar, a narração da ação de atentar contra a Constituição é um elemento imprescindível da denúncia, sem o qual não é possível exercer o direito de defesa.
No tocante ao elemento (i) quis, a denúncia traz um conjunto disforme de condutas envolvendo diversos órgãos e instituições, vários centros de poder e decisão independentes uns dos outros, e uma profusão de pessoas randomicamente ligadas através de conexões difusas e imprevisíveis, todas reguladas pelo direito administrativo.
Qual é, então, o fato político típico imputável exclusivamente à Presidente da República senão odiosas extensões e analogias

45 Segundo Fábio Konder Comparato, a “tradução ‘devido processo legal’, que se encontra no art. 5.º, LIV da nossa Constituição, é errada. Law, na fórmula inglesa, é direito e não lei. Aliás que uma norma sobre a inconstitucionalidade de leis pudesse adotar como parâmetro de julgamento a própria legislação.” (“O papel do juiz na efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos. Visões contemporâneas, Associação Juízes para a Democracia, São Paulo, 2001, p. 27, nota 5).
46 Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 3.ª edição, tradução José de Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, pp. 285 e seguintes.
incriminatórias incompatíveis com o Estado de Direito47, dado que poenalia sunt restringenda48? Se o tipo penal é um universo verbal, a denúncia é o mundo próprio de uma ação humana típica em concreto. Para que não seja inepta, a denúncia deve narrar completamente a ação típica. Na denúncia da Câmara, contudo, não é possível extrair um único parágrafo com a descrição pormenorizada da conduta típica, exclusiva, direta, pessoal e isoladamente reportada à denunciada, em especial no tocante ao que foi impropriamente chamado de pedalada fiscal. Levando-se em consideração a forma processual penal que o processo de responsabilidade possui, não há, pois, descrição da autoria, a qualidade de “quem comete o fato punível pessoalmente.”49 Para além de uma responsabilidade objetiva (sem dolo ou culpa), se cogita aqui de uma responsabilidade sem fato-crime descrito.
Isso é perceptível facilmente, pois a (a) edição dos decretos de abertura de créditos suplementares, supostamente criminalizada pelo art. 10, 4 (São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária: Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária) e art. 11, 2 (São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos: Abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais), ambos da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, seguiu o rito da máquina administrativa, condicionada por comportamentos anteriores dos dois poderes republicanos, independentes, harmônicos e baseados no princípio da confiança50.
Os acusadores/julgadores partem, matreiramente, da inegável relação constitucional de controle interorgânico51 entre Legislativo e Executivo, nunca acionada, para colocarem crimes de responsabilidade onde não há. Omisso, contraditório e paradoxal, o Legislativo não pode, só agora, “criminalizar” ex post facto o agir de outro Poder, queimando as etapas obrigatórias, fazendo justiça com as próprias mãos, com o agravante de jamais ter cumprido os seus deveres, e, o mais perigoso, instituindo-se em tribunal ad

47 Conforme Johannes Wessels, “Todas as consequências jurídicas do fato punível devem corresponder ao princípio do Estado de Direito e ao princípio da proporcionalidade.” (Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 5).
48 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 8.ª edição, Livraria Freitas Bastos, 1965, p. 261.
49 Johannes Wessels, Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 121.
50 Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 3.ª edição, tradução José de Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, pp. 285 e seguintes.
51 Karl Loewenstein, Teoría de la Constitucion, traducción de Alfredo Gallego Anabitarte, Ediciones Ariel, Barcelona, 1964, pp. 252 e seguintes.
hoc, de ocasião e exceção, adestrado para ratificar a decisão com os selos da vingança pessoal, traição, suspeição, injustiça e fraudes à lei e à Constituição. Como isso pode ser jurídico? Segundo Juliano, no Digesto,in his quae contra rationem juris constituta sunt, non possumus sequi regulam juris52. Em outras palavras, mas no mesmo latim, ex iniuria ius non oritur.
Na questão tomada ex post facto, o máximo que o Poder Legislativo poderia pleitear é uma prestação de contas entre os Poderes (“relação de inspeção entre órgãos políticos diferentes”53), sem repercussão sancionatória sobre a titular do poder. Em disputa com o Executivo quanto aos destinos do orçamento, o Legislativo não pode, motu proprio, manu propria e magnis itineribus, criminalizar a conduta do titular de outro Poder e expulsá-lo para impor a sua vontade, movendo o subterrâneo político e manipulando a legalidade.
Segundo o Direito, se a lei prejudicial não retroage, também não retrocede a jurisprudência maligna sem uma nova lei que altere o suporte fático ou sem mudança prévia no entendimento do órgão competente para atingir apenas ações posteriores à transformação. Um novo entendimento do poder acusador/julgador não é supedâneo para a configurar uma infração. Semper in dubiis benigniora praeferenda sunt54.
Ainda neste tópico, (b) a operação de crédito com o Banco do Brasil relacionada ao Plano Safra não é descrita em lei como um crime de responsabilidade. A atipicidade é onipatente. De um lado, o crime de responsabilidade não pode resultar da conjugação de leis para produzir uma incriminação que não existiria isoladamente. É inconstitucional usar a Lei de Responsabilidade Fiscal, assim como qualquer outra, para criar um “crime de responsabilidade” como tal não previsto. De outro, conforme a conclusão do Relatório de acusação, o crime de responsabilidade estaria, em tese, previsto no art. 11, item 3, da Lei 1.079/50 (São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos: Contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal). Mas qual é o mútuo,in uno actu? Quem são os seus sujeitos, mutuante (mutuo dans, creditor) emutuário (mutuans, debitor)? Onde estão, em concreto, todos os

52 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 8.ª edição, Livraria Freitas Bastos, 1965, p. 271.
53 Pedro Lomba, Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 84.
54 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 8.ª edição, Livraria Freitas Bastos, 1965, p. 260.
“elementos” deste “negócio jurídico” típico, os “essentialia, sem os quais o negócio não pode existir”, os “naturalia, que se consideram estipulados salvo cláusula contrária” e os “accidentalia, que só se consideram pactuados mediante estipulação expressa”55? A acusação supera as lacunas, retorce os fatos, ignora os dogmas, cria pontes legais e dá saltos lógicos para incriminar.
Isso é reconhecido pelo Procurador da República do Distrito Federal Ivan Cláudio Marx na promoção de arquivamento parcial feita no procedimento investigatório criminal n.º 1.16.000.001686/2015-25.
A notitia criminis e a acusação, contudo, afirmam existir um contrato bancário sem descrevê-lo. Não narram, não explicam o suposto “caso típico”56 concreto e subjacente, conforme o seu prévio conteúdo legal abstrato e esquematizado. A postura fere o saber legal e a consciência jurídica preexistentes sobre o que se entende porcontrato de mútuo (elemento normativo do tipo57).
Ao contrário de um mútuo, portanto, a operação levada a efeito é uma política pública de apoio à produção agrícola regulada pela Lei 8.427, de 27 de maio de 1992. O Governo sequer é parte dos negócios jurídicos realizados, que pertencem ao universo jurídico do crédito rural, institucionalizado pela Lei 4.829, de 5 de novembro de 1965, de longa experiência e vasta aplicação.
Em outro sentido, não há segurança jurídica e garantias fundamentais possíveis se o intérprete produz crimes de reponsabilidade para o próprio consumo, deleite e conveniência de seu grupo político, em desrespeito ao topos nemo judex sine lege. Salvo para beneficiar a pessoa58, o Estado de Direito não admite combinações de leis (lex tertia) para fins incriminatórios.
O que antes era dogmático, agora é lei, como mostra o art. 7.º, incisos I, II e III, da Lei Complementar n.º 95/98, que regulamentou

55 Fábio Konder Comparato, “Reflexões sobre as promessas de cessão de controle societário”, Novos ensaios e pareceres de direito empresarial, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1981, p. 237.
56 Tullio Ascarelli, “O problema das lacunas e a antinomia sobre o conceito de interpretação”, em “A ideia de código no direito privado e a tarefa da interpretação”, Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, 2.ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1969, p. 66.
57 Everardo da Cunha Luna, Dolo (Direito penal) – I, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 29, coord. R. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 284.
58 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, pp. 36/39.
o art. 59, parágrafo único, da Constituição Federal: “O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; o âmbito da aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.”
Se apenas a lei de crimes de responsabilidade pode veicular crimes de responsabilidade (Lei 1.079, de 10 de abril de 1950), uma denúncia por crimes de responsabilidade não pode usar de uma lex tertia para, por teratogenia, expelir a monstruosidade que é sancionar condutas não incrimináveis.
Sabe-se que a expressão crime de responsabilidade tem sentido equívoco no direito brasileiro. É certo que não se trata de um delito, propriamente, injusto penal típico, ilícito eculpável59, mas seu caráter misto é inconteste60. Além das infrações político-funcionais dos agentes públicos, são crimes de responsabilidade aqueles crimes funcionais que se distinguem dos crimes comuns. Conforme o escólio de José Frederico Marques, citado por Francisco de Assis Toledo, a “expressão crime de responsabilidade tem, no Direito brasileiro, um sentido equívoco, pois que não designa apenas figuras delituosas de ilícito penal, mas também violações de deveres funcionais”61.
Mas, por outro lado, a tipicidade não se restringe ao direito penal62. Decorrência do princípio da legalidade, serve a qualquer ramo do direito63, “garante a proteção do cidadão ante o exercício arbitrário e a extensão do poder punitivo estatal. Reza que só uma lei escrita pode fundamentar a punibilidade de uma ação e cominar uma pena como

59 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 80.
60 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 206.
61 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 141.
62 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, Editora Atlas, São Paulo, 2007, pp. 186/187. Também Flávio Luiz Yarshell, Tutela jurisdicional, Editora Atlas, São Paulo, 1998.Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 126.
consequência jurídica”64. Ao imantar todo o Direito, a legalidade/tipicidade adensa a esfera jurídica de proteção do ser humano. A doutrina denomina de atipicidade constitucional as ofensas “aos preceitos constitucionais com relevância processual”, os quais “têm a natureza de normas de garantia, ou seja, de normas colocadas pela Constituição como garantia das partes e do próprio processo.”65 A atipicidade constitucional “importa sempre numa violação a preceitos maiores, relativos à observância dos direitos fundamentais e a normas de ordem pública.”66
Deve-se, portanto, reter a lição de Francisco de Assis Toledo quanto à “‘função de garantia da lei penal’”67. Segundo valioso dogma da ciência do direito no campo sancionatório, “Lex praeviasignifica proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem). Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas.”68 Não há lição melhor, propalada pelos grandes penalistas69. Segundo Everardo da Cunha Luna, “Pela lex scripta, temos o princípio da legalidade no sentido escrito, dele excluindo o direito costumeiro. Pela lex certa, afirma-se o princípio da Bestimmtheitsgebot, ou seja, o princípio da determinação. Pela lex scripta, proíbe-se a analogia. Pela lex praevia, afirma-se o princípio da irretroatividade da lei.”70 É o uso da dogmática “como ‘pensamento orientado a valores’” para desenvolver o Direito71, ou, aqui, para evitar que ele regrida.
Sem uma lei a criminalizar um injusto político típico que descreva um ato materialmente atentatório à Constituição, não há pressuposto lógico-jurídico de responsabilização da Presidente da República.

64 Johannes Wessels, Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 11.
65 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, pp. 19/20.
66 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 20.
67 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 22. Também Johannes Wessels, Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, pp. 11/13 e 30.
68 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 22.
69 Winfried Hassemer, Direito penal: fundamentos, estrutura, política, organização e revisão de Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, tradução de Adriana Beckman Meirelles [et al.] Porto Alegre, Sérgo Antônio Fabris Ed. 2008, p. 53.
70 Everardo da Cunha Luna, Estrutura jurídica do crime, Editora Saraiva, 4.ª edição, 1993, p. 41.
Existem fronteiras intransponíveis para atuação punitiva do Estado, como deixa claro o art. 5.º, incisos II, XXXIX e XL, da Constituição Federal. O que é Direito e o que é Injusto? Numerus clausus, apenas a lei poderá dizê-lo, jamais o interprete. Para que exista um ilícito, é preciso que se verifique o fenômeno legal da subsunção72, quando uma ação humana está compreendida num tipo legal.
Não existem dúvidas de que o Estado de Direito (primado da lei, das liberdades fundamentais e das garantias institucionais73) é, portanto, um Estado de Leis74 reportadas a uma Constituição.
Em suma, o procedimento não se faz sub lege, os abusos o subverteram. A acusação não se fez per lege, há tanto incriminação ex post facto, contrária ao id quod plerumque accidit em vigor até então entre os poderes, quanto há imputação de um fato político atípico, pelo uso de uma combinação de leis, que ofendem o princípio da legalidade de duas formas: a irretroatividade de leis prejudiciais, jurisprudência e decisões administrativas já consolidadas, e a anterioridade para as leis incriminatórias. O recebimento e a pronúncia ocorreram extra legem, em virtude da inexistente correlação entre acusação e decisão. Nenhum item do processo passa no teste do Estado de Direito, compreendido como “governo da lei”75, garantidor de igualdade,segurança e liberdade entre os concidadãos.
Ou seja, quanto (a) à “função igualizadora da lei”76, o processo está eivado pela atipicidade constitucional e tem um destinatário específico. Não há outras pessoas sendo processadas pelas mesmas condutas.

72 Mais precisamente, consoante Johannes Wessels, “O exame de se o tipo legal foi preenchido pelos elementos singulares do fato, denomina-se ‘subsunção’.” (Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 6).
73 Fábio Konder Comparato, “Lei penal em branco: inconstitucionalidade de sua integração por norma de nível infralegal – Os crimes de perigo são crimes de resultado”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 266.
74 “‘Em sentido abrangente’, escreveu o Professor Konrad Hesse, ‘não redutível por nenhuma limitação da esfera individual ou estatal, o Estado de Direito é um Estado de Lei (ist der Rechtstaat Gesetzesstaat), dando à vida da comunidade, através do ordenamento jurídico, forma e estrutura’.”Fábio Konder Comparato, “Lei penal em branco: inconstitucionalidade de sua integração por norma de nível infralegal – Os crimes de perigo são crimes de resultado”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 267.
75 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo, 5.ª edição, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pp. 156/157.
76 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia. Uma defesa das
Há, portanto, “medida em desfavor de uma única pessoa”77. Quanto (b) à “função de segurança”78, o processo destrói a abstratividade da lei, que é a maneira de ligar uma “consequência à atribuição ou emissão de uma ação típica, enquanto tal repetível”79, apta a “assegurar a previsibilidade e portanto a calculabilidade das consequências das próprias ações”80. O que era fartamente previsível foi desprezado e tornado crime. Já sobre a (c) função libertadora da lei, o processo quebra o nexo de obediência impessoal e indireto entre as pessoas (liberdade negativa), único possível na democracia, fundada em ordens provenientes da vontade geral (liberdade positiva) que o voto da maioria dos cidadãos proporciona, por fazer prevalecer a vontade de um único homem (Eduardo Cunha) e de seu grupo, o temido demon of faction, que, at certain seasons, extend his sceptre over all numbers bodies of men.81
A respeito do (ii) quid, a denúncia é contraditória e omissa, obrigada, pois, a assimilar a postura do chefe, que lhe dá orientações. Na primeira imputação, não há descrição dos malefícios, pois a fixierung na meta fiscal foi cumprida. E, o essencial para a cognição da causa, o Congresso Nacional aprovou o PLN 5/2015, convolando os atos anteriores em lei. Se não há inconstitucionalidades nesta lei, ela é que vale, e não a força circunstancial da poderosa e dissimulada factio. Aprovada a lei, nada mais pode ser exigido do Poder Executivo, enquanto poder, e da Presidente da República, enquanto pessoa, que, obrigatoriamente, como todos os brasileiros, só está obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei (art. 5.º, II, da CF). A lei aprovada afasta as interpretações em sentido contrário, exclui a ilicitude das condutas e promove o exercício regular de direitos subjetivos (art. 23 do CP).
Quanto à ação atípica de execução do Plano Safra, não há malefícios expostos na parte final do Relatório. Refere a “persistentes atrasos no pagamento de compromissos financeiros do Tesouro Nacional junto ao Banco do Brasil” (fl. 124 do Relatório) sem esclarecer, sem qualificar se são atrasos ou se eles decorrem da natureza das obrigações do Tesouro de

77 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo, 5.ª edição, Paz e Terra, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Rio de Janeiro, 1986, p. 158.
78 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo, 5.ª edição, Paz e Terra, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Rio de Janeiro, 1986, p. 157.
79 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo, 5.ª edição, Paz e Terra, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Rio de Janeiro, 1986, p. 157.
80 Norberto Bobbio, “Governo dos homens ou governo das leis”, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo, 5.ª edição, Paz e Terra, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Rio de Janeiro, 1986, p. 157.
81 Alexander Hamilton, The Federalist, number nº 65, Encyclopaedia Britannica, University of Chicago, Twenty-third printing, 1980, p. 200.
somente pagar após a verificação e a fiscalização exaustiva quanto ao emprego adequado dos recursos destinados ao programa. Mas, principalmente, sem dizer que os compromissos foram todos quitados em 2015. Uma falácia.
O suporte fático82, mal colocado, não possibilita a análise correta quanto aos supostos danos, pois, da forma pretendida, eles não existiram.
Não há menção às fases desse suposto empréstimo, do processus caracterizador do vinculum obligationis típico, desde a “fase do nascimento e desenvolvimento dos deveres” à “fase do adimplemento”83. Conforme Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, a obrigação é um processo. Os deveres resultantes dos contratos “surgem, se processam e se adimplem.”84 Assim, “Obrigar-se é submeter-se a um vínculo, ligar-se, pelo procedimento, a alguém e em seu favor. O adimplir determina o afastamento, a liberação, e, na etimologia da palavra ‘solutio’ surpreende-se vigorosamente essa ideia.”85
Contudo, a notitia criminis só confunde. Às vezes diz empréstimos noutras “modalidade de mútuo, ou operação assemelhada, a configurar operação de crédito nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal”, mas a referida lei (LC 101/2000) não é o lugar adequado para delimitar como funcionam tais conceitos jurídicos. Não fosse a sicofantia, a impressão é que são leigos. Não há delimitação dos padrões claros, dos standards of conducts essenciais para a construção lógica e dogmática que é pressuposta, exigidos para “alcançar maior justiça e certeza”86.
Nada obstante, do ponto de vista jurídico, a dinâmica operacional para o cumprimento da policy é outra. A subvenção está amparada por lei e por um enorme emaranhado de ritos administrativos, regras contábeis

82 “Pontes de Miranda criou a expressão suporte fático para traduzir o vocábulo técnico germânico ‘Tatbestand’. Outros usam com o mesmo significado os termos ‘pressupostos de fato’, ‘suposto de fato’. Os juristas italianos utilizam o termo ‘fattispecie’, que é aglutinação da expressão latina medieval ‘species facti’. E ‘species’ é o correspondente latino de ‘Eidos’, figura, forma.” (Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976, nota 4, p. 75).
83 Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976, p. 44.
84 Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976, p. 16.
85 Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976,
p. 44 (Nota 52: “‘Solutio’, ‘solvere’ tem o significado de cortar as cadeias, libertar-se.”).
86 Tullio Ascarelli, “A função das construções lógico-dogmáticas”, em “A ideia de código no direito privado e a tarefa da interpretação”, Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, 2.ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1969, p. 78.
e regulações bancárias. Juridicamente, não há contrato de empréstimo ou operação de crédito assemelhada.
E, ainda, a lei não estipula prazo para o pagamento pelo Tesouro Nacional, pois há um manancial quase inesgotável de contratos que apresentam vicissitudes que dependem do caso a caso. Já sabemos com Clóvis V. do Couto e Silva que “O desenvolvimento da relação obrigacional, polarizado pelo adimplemento, está condicionado por certos princípios gerais, ou específicos a cada tipo de obrigação, ou comuns a alguns deles. Entre os gerais, a nosso juízo, devem-se incluir o da autonomia da vontade, o da boa-fé e o da separação entre as fases, ou planos, do nascimento e desenvolvimento do vínculo e o do adimplemento.”87 Dado, portanto, o universo de contratos realizados entre os produtores rurais e a instituição bancária, seria necessário à acusação maior minúcia e cuidado quanto às suas alegações, que são frágeis.
Sobre o (iii) cur, a acusação não explicita quais seriam os motivos, os porquês que demonstrariam o móvel da acusada, algo como a mens rea dos indigitados, ante a ausência de ilicitude precedente das condutas. Nullum crimen sine injuria. Como é possível ter consciência de uma ilicitude (“contrariedade ao direito”88) ainda não erigida a esta condição? Por um dolus subsequens, no caso dos decretos suplementares? Ou por um dolus praeveniens, na questão do Plano Safra? Como justificar a existência de um atentado à Constituição do Estado por quem jamais teve prévio acesso ao dolo típico, só criado por lei? Como conhecer e querer, ter consciência e vontade sobre algo sem existência anterior? O paradoxo é insuperável. O fato é que antes do tipo (“modelo de ação proibida”89), quando ainda não há proibição, o dolo (“conhecimento e vontade do fato criminoso”90) é apenas uma vontade qualquer, um indiferente penal. No direito penal, fonte da tipicidade (Ernest von Beling) e da antijuridicidade (Karl Binding), o dolo é a “vontade de realização de um tipo penal, com o conhecimento de todas as suas circunstâncias objetivas”91, “de seus elementos integrantes, quer os elementos materiais, quer os culturais, quer os elementos normativos”92. Como é

87 Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976, p. 15.
88 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 86.
89 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 84.
90 Everardo da Cunha Luna, Dolo (Direito penal) – I, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 29, coord. R. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 284.
91 Johannes Wessels, Direito penal (aspectos fundamentais), tradução de Juarez Estevam Xavier Tavares, Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 50.
92 Everardo da Cunha Luna, Dolo (Direito penal) – I, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 29, coord. R. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 284.
possível, então, conhecer o caráter injusto de uma conduta política se ela não consta no rol dos ilícitos políticos típicos, seja por sua adequação aos procedimentos de outras Administrações, no caso dos créditos suplementares, seja por ausência de norma incriminadora, pura e simplesmente, no caso do Plano Safra?
Portanto, nos termos da convenção constitucional93 da República Federativa do Brasil (Constituição de 5 de outubro de 1988), não há infração político-administrativa presidencial sem o suporte fático (art. 85, parágrafo único, da CF) que a promova a umailicitude constitucional de caráter eminentemente institucional (que respeite a fórmula atentado à Constituição, que tem como objeto jurídico a proteção do Estado, conforme a tradição alóctone94). Assim, em virtude daautonomia e independência entre os Poderes, apenas o desempate dado pela regulação rigorosa da Constituição pode justificar, dentro de seus claros limites, que um dos Poderes venha a responsabilizar outro. O sujeito responsabilizador só tem legitimidade para responsabilizar outro Poder nos casos constitucionalmente típicos e segundo tais ditames convencionais.
Atentar contra a Constituição exige, portanto, uma conduta constitucionalmente compatível, tendo a sua ilicitudepredeterminada em norma legal, sob pena de assalto à autonomia políticado outro Poder a ser responsabilizado, sem autorização da Constituição. O desvalor político da conduta, neste sentido, deve estar carregado de constitucionalidade. Do contrário, como no caso, não se estará cumprindo o “esquema sancionatório típico”95 previsto na Constituição.
Tudo isso porque, com os olhos voltados para o direito e o processo penal, ou seja, para a observância dos “critérios de certeza e de garantia no procedimento e na decisão”96 quanto aoimpeachment, dada a natureza mista do instituto97, pelo fato de não haver apenas a perda do cargo (sanção política), mas também a grave inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública (sanção criminal, art. 52, I, parágrafo único, da CF), os dogmas libertários dodireito e do processo penal estão plenamente

93 Pedro Lomba, Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 143.
94 Paulo Brossard, O impeachment, Editora Saraiva, 2.ª edição, São Paulo, 1992, p. 77.
95 Pedro Lomba, Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 147.
96 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 200.
97 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 200.
em vigor. Sem conduta típica não é possível atingir a consciência da ilicitude. E sem devido processo jurídico não há liberdade individual.
Aqueles que afirmam não haver pena criminal noimpeachment tupiniquim, não leram com a devida atenção o art. 5.º, XLVI (“individualização da pena”), sua letra e (“suspensão ou interdição de direitos”) e o art. 52, parágrafo único (“processar e julgar”, “condenação”), ambos da Constituição de 1988. Há previsão cabal de privação de direito público subjetivo da acusada, que atinge o seu status activae civitatis.
Por isso, segundo Miguel Reale, o impeachment, “se tem um lado constitucional e político, possui também o seu aspectopenal, não se reduzindo, como se alega, a um processo substancialmente administrativo ou político-administrativo.”98 Neste sentido, o impeachmentdeve ser julgado “com todas as garantias, procurando-se assegurar condições de objetividade e certeza”, além de se “conferir a presidência do órgão judicante ao Chefe do Poder Judiciário”99. O jurista assevera mais, no sentido de que o Estado não pode “privar os cidadãos daquele mínimo de garantia e de segurança que a Constituição estabelece quando se trata de apurar a responsabilidade dos administradores federais. Em se tratando de preservação de direitos, seria inadmissível que não fossem seguidas as cautelas e as prudências previstas na Carta Maior.”100
Por fim, os elementos ubi, quomodo e quandodevem ser tratados conjuntamente. Quanto ao (iv) ubi, salvo na óbvia situação dos decretos de abertura de créditos suplementares, que partiram diretamente da Presidente, as mal afamadas e atípicas “pedaladas fiscais” não estão descritas, mesmo que in tribus verbis, como obriga o dever serda denúncia (art. 41 do CPP). Os funcionários do Tesouro Nacional ouvidos pelo Senado

98 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 206. Para Fábio Konder Comparato, a “perda do cargo, mencionada no art. 52, parágrafo único, da Constituição, é incontestavelmente uma pena” (“Crime de responsabilidade – Julgamento pelo Senado de Presidente da República que renunciou a cargo”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 208).
99 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 208.
100 Miguel Reale, “‘Impeachment’ de prefeito municipal”, Direito administrativo, Editora Forense, Rio de Janeiro-São Paulo, 1969, p. 206. Ainda segundo Miguel Reale, “A inabilitação para o exercício de qualquer função pública constitui pena acessória, da qual a cassação do mandato ou a parte do cargo representa a pena principal, e esta pode subsistir sem aquela, embora a recíproca não seja verdadeira.” (p. 209). Em outra passagem, afirmou o jurista: “a inabilitação para cargo ou função não eletivos, que importa em privação de direito público subjetivo de outra natureza, constitui ineludivelmente uma pena acessória, mas pena”. (p. 203).
disseram que a questão jamais chegou à Presidência, permanecendo no âmbito do Ministério da Fazenda.
Sobre o (v) quomodo, não há materialização de conduta por ato próprio, imputável ex voluntate diretamente à pessoa Dilma Rousseff, mas inúmeras vontades paralelas101, vários atos administrativos complexos102, seja por complexidade interna103 das esferas administrativas ou por complexidade externa104 dos diversos órgãos da Administração ou entre ela e o setor privado, além de infindáveis negócios jurídicos administrativos105 e privados106 individualizados entre as instituições financeiras e os destinatários, agricultores, associações e cooperativas, tudo balizado pelo “princípio da restritividade (só pode fazer o que a lei determina e autoriza)”107, em cumprimento à política prevista na Lei 8.427, de 27 de maio de 1992.
A respeito do (vi) quando, nada é seguro. Enquanto nos decretos de abertura de créditos suplementares a denúncia retrocede a fatos nunca antes vistos como ilícitos, no Plano Safra ela prospecta por fatos nunca antes típicos. No primeiro caso, a notitia criminis simula a destempo uma gravidade, desconsiderando que a meta fiscal foi cumprida. No segundo, ela finge irregularidade orçamentária porvir, pois em 2015 não houve atrasos e foram pagos os débitos dos anos anteriores. O açodamento é tão grande que os denunciantes sequer esperaram o ano terminar e a manifestação do Tribunal de Contas. Na primeira, criou-se uma responsabilidade por retroatividade; na segunda, por antecipação. Nenhuma das formas é possível.

101 Aqueles que, “em conjunto, não geram obrigações recíprocas e opostas entre as partes, como no contrato” (Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 155).
102 Nos quais “duas ou mais vontades são declaradas por órgãos diferentes, configurando consenso sobre certo objeto” (Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 155). 103 Quando “os atos se concretizam por órgãos ou agentes da mesma entidade” (Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 156).
104 Quando “as vontades paralelas emanam de entidades com personalidades jurídicas diversas [...] vontades unitárias diferentes, embora paralelas, conjugando-se para atingir o objetivo comum” (Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 156).
105 Os “acordos bilaterais ou plurilaterais que são celebrados entre Administração e particular ou entre órgãos jurídicos dotados de personalidade jurídica própria da Administração, sejam da mesma pessoa política, ou de pessoas políticas diferentes.” (Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 207).
106 “Negócio jurídico é toda declaração de vontade destinada à produção de efeitos jurídicos correspondentes ao intento prático do declarante, se reconhecido e garantido pela lei.” (Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1988, p. 280).
107 Edmir Netto de Araújo, Do negócio jurídico administrativo, Editora RT, São Paulo, 1992, p. 168.
Após a longa série de falhas, em segundo lugar, no Senado Federal, com a mesma pressa e irreflexão, no dia 12 de maio de 2016, a acusação foi recebida com base num Relatório superficial e lacunoso, que não correlaciona fatos certos a normas precisas, que ignora o audi partem alteram e faz analogias in malam partem108, e abusa da expressão “e outras operações assemelhadas” (art. 29, III, da Lei Complementar 101/2000). Como é possível um elemento normativo do tipo emprestado? O Relatório consegue confundir e obscurecer o que já era incompreensível. A acusação e o Relatório dizem empréstimo ou operação de crédito assemelhada, sem descrever uma ou outra. A defesa fica sem saber qual é o contexto fático exato e os contornos jurídicos precisos da acusação. Operação de crédito é expressão equívoca proveniente do ambiente econômico, não jurídico. Facilita a superficialidade, a generalização, a insegurança e a incerteza. Só aumenta o poder do arbítrio. Não há operação de crédito sem contrato-tipo feito e assinado. Por segurança, deve ser denominado como contrato de crédito109. Os acusadores valem-se de linguagem imprecisa para emplacar um contrato mutante sem elementos típicos. Quem são credor e devedor? Qual é a relação de confiança, o prazo, o preço, a mora, o risco, o objeto, o lucro, as garantias?
Não bastasse, a relatoria foi dada ao PSDB, o que nulifica o processo de pleno direito. Ao pagar um acusador, o Partido reeditou a imoralidade da sukophantia, do delator profissional, “um dos pontos negros da democracia ateniense”110, como era o kalumniator para a administração da justiça no processo romano111. Além de ser acusadoroculto, o Partido tornou- se condutor, instrutor e julgador da causa. É especialmente constrangedor a parte em que o Relator decide impunemente sobre a própria parcialidade. Não é jurídico que alguém pague pela notitia criminis, participe da instrução e relate o processo, iluminando os pontos de vista da acusação e ocultando aqueles da defesa. Os prejuízos para a defesa são incomensuráveis. Ela não é ouvida. Há arremedo de justiça. Bentinho não é o juiz imparcial para julgar Capitu. Não há isenção.
O sistema acusatório pressupõe separação total entre
acusador e julgador. Como sentenciou Bulgaro, judicium est actum trium

108 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 27.
109 Sérgio Carlos Covello, Operações de crédito ou contratos de crédito, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 56, coord. R. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 122.
110 Claude Mossé, Dicionário da civilização grega, tradução de Carlos Ramalhete, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004, p. 257.
111 Giorgio Agamben, “K”, Nudez, tradução de Davi Pessoa, Autêntica Editora, Belo Horizonte, 2014, p. 37. As outras temeritates (“ou obscurecimentos da acusação”) eram a praevaricatio e a tergiversatio(p. 42).
personarum: judicis, actoris et rei112. Na questão, o Ministério Público está para o Judiciário como a Câmara para o Senado. São órgãos independentes; um acusa, outro julga. Não é o que ocorre aqui. É sintomático e embaraçoso que o Relator não tenha mencionado as circunstâncias fáticas reais pelas quais Eduardo Cunha foi acusado de praticar desvio de poder. Quem lê o Relatório não sabe o que fez Eduardo Cunha. A omissão é deliberada, permanecendo na intimidade do Relator. As ilegalidades de Cunha não incomodam as orelhas moucas do Relator. Claro, eles têm o mesmo lado.
Nada obstante, para sabermos se o art. 93, IX, da Constituição (“fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”) está sendo cumprindo é necessário que as razões sejam rigorosamente expostas, já que o “convencimento é sobretudo convicção fundamentada, ou seja, convencimento transparente, justificado perante as partes e a sociedade.”113 Para Antônio Magalhães Gomes Filho, “na motivação devem ser explicitados todos os passos percorridos pelo magistrado para chegar à conclusão, representando, por isso, o ponto de referência obrigatório para a verificação da imparcialidade, do atendimento às prescrições legais e do efetivo exame das questões suscitadas no processo pelas partes.”114
Outra ilegalidade decorre de a Comissão Especial no Senado ter transformado o princípio da maioria parlamentar em regra da maioria facciosa, sufocando o direito de defesa, retirando-lhe aplenitude, a indeferir requerimentos na base do lanhar da maioria. As escolhas da maioria só fazem sentido em ambiente decisório sóbrio, impessoal e imparcial. Do contrário, torna-se tirânica como a castradoraQueen of Hearts: “Sentence first
– verdict afterwards.”115 É preciso enfrenta-la, como fez Alice. Não fosse a prudência do Ministro do Supremo Tribunal Federal, a maioria parlamentar teria indeferido a prova pericial, que revelou o que já era óbvio.
Neste sentido, acumpliciado, o Relator elaborou um ambiente jurídico distópico de constituição flexível, de tipicidade elástica, de crime de ocasião, de arbítrio cognitivo, de omissão deliberadae desrespeito à tradição brasileira, incompatíveis com as franquias da rule of law e do due process of law. O Relator reelaborou tipos em mosaico, usando artigos de leis

112 José Frederico Marques, “Os princípios constitucionais da justiça penal”, Estudos de direito processual penal, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1.ª edição, 1960, p. 48.
113 Antônio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, Editora RT, 1997, p. 163. 114Antônio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, Editora RT, 1997, p. 164. 115Lewis Carroll, Alice’s adventures in wonderland, Walker Books, 2009, p. 201.
diversas de maneira reticular, impossível de conferir unidade à consciência da ilicitude, com exatidão e antecedência para o destinatário, o que torna inviável o conhecimento prévio da parte dele e a sua defesa, irrealizável, desnorteada por sucessivos sustos, surpresas, curvas, trampolins, trapézios e saltos a cada fase do processo. Ao contrário, “stuff and nonsense”, diria Alice, crimes non fecit saltus. O Relatório, do ponto de vista lógico, apresenta crimes fuzzy, sem contornos, sem limites, sem corpos.
Para usar uma criação de Lewis Carroll e fortalecer a contradição inviabilizadora da pretensão acusatória, é preciso dizer que são incompatíveis com o Estado de Direito aquilo que poderíamos denominar de crime-valise, construído pela conjunção de várias leis para criar tipos híbridos, como nas suas palavras-valise116. Osnark (turpente117) do poema The hunting of the snark é formado por snake(serpente) e shark (tubarão). A pedalada- fiscal é uma forma de crime-valise de responsabilidade, criação imaginária, de perturbadora crueldade e violência linguística inimaginável, que enfraquece a “exigência de certeza do direito e de garantia da liberdade individual” do direito criminal, que frisa “o caráter declaratório da interpretação” e impõe “a exclusão da analogia e a necessidade de assentar qualquer incriminação sobre uma norma expressa da lei”118. Ao contrário do nonsense literário, no direito as palavras devem ser interpretadas de modo a evitar o absurdo, o ilógico, o impertinente, o inconsequente e o teratológico. Não se joga com o direito. Os prudentes ensinam que interpretatio illa sumenda quae absurdum evitetur119.
A fórmula “e outras operações assemelhadas” (art. 29, III, da Lei Complementar 101/2000) é incompatível com a “função de garantia do tipo”. E o Relator acolhe uma distinção entre “tipicidade material” e “formal” incompreensível para os cultores do direito. Como se a tipicidade material prescindisse da formal. Ao contrário, exige-se uma “dupla ordem de valoração”120. Na primeira, excluída aforma haverá atipicidade. Na segunda, afastado o conteúdo subsistirá alicitude. Segundo Francisco de Assis Toledo, “Na construção originária de Beling (1906), o tipo tinha uma significação

116 Sebastião Uchoa Leite, “O que a tartaruga disse a Lewis Carroll”, Aventuras de Alice, tradução de Sebastião Uchoa Leite, 3.ª edição, Sumus Editorial, 1980.
117 Lewis Carroll, A caça ao turpente, tradução, apresentação e notas de Álvaro A. Antunes, Interior Edições, 1984.
118 Tullio Ascarelli, “A função das construções lógico-dogmáticas”, em “A ideia de código no direito privado e a tarefa da interpretação”, Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, 2.ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1969, nota 127, pp. 76/77.
119 Fábio Konder Comparato, “Crime de responsabilidade – Julgamento pelo Senado de Presidente da República que renunciou a cargo”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 215. 120 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos do direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1991, p. 127.
puramente formal, meramente seletiva, não implicando, ainda, um juízo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas características. Modernamente, porém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentidoformal, um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precisa sertípica, precisa ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito (nullum crimen sine lege). Não obstante, não se pode falar ainda em tipicidade, sem que a conduta seja, a um só tempo, materialmente lesiva a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovável.”121
Se acolhesse mesmo a distinção, o Relator deveria afastar a tipicidade no caso das emissões dos decretos de abertura de créditos suplementares, pois “a concepção material do tipo mais se ajusta aos usos e costumes, ao id quod plerumque accidit.”122 Da mesma forma, mais uma vez desmentido, se o Relator acolhesse a tipicidadematerial, consideraria que a meta fiscal de 2015 foi cumprida, que o PLN 5/2015 foi convertido na Lei 13.199/2015 e que os compromissos da União foram quitados em 2015, afastando os imaginários suportes fáticos. Deve vigorar o adágio in dubio pro libertate. Libertas omnibus rebus favorabilior123.
A conversão em lei de uma nova meta fiscal não é o mesmo que a convalidação de atos administrativos por outros atos da mesma categoria jurídica, mas mudança do paradigma legal, com todos os efeitos que isso acarreta no plano punitivo, como dispõe o art. 2.º, parágrafo único, do CP: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
O Relator jamais poderia ignorar a lex mitior. Isso é gravíssimo. A lei sequer é mencionada no Relatório, nada obstante os poderes do Estado funcionarem segundo o axioma legem patere quam fecisti (“suporta a lei que fizeste”124). O Legislativo pode ignorar a lei que ele próprio aprovou?
Não é o único momento em que o Relator ignorou o significado de lei. As leis jamais estiveram no seu âmbito cognitivo, pois sua concepção de crime de responsabilidade é cerebrina. Usa as leis apenas para

121 Francisco de Assis Toledo, O erro no direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1977, p. 46.
122 Francisco de Assis Toledo, O erro no direito penal, Editora Saraiva, São Paulo, 1977, pp. 46/47.
123 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 8.ª edição, Livraria Freitas Bastos, 1965, p. 273.
124 José Cretella Júnior, Legalidade (Direito administrativo) – I, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 48, coord. R. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 190.
disfarçar as ilegalidades. O método utilizado é a busca da condenação a todo custo, mesmo se for preciso torturar fatos e contornar leis inconvenientes, sabendo que o pretexto para a condenação será o de que se trata de um julgamento político. Até aqui, a lei não teve importância, como em regimes de exceção. Formou-se uma adesão leonina para o resultadoimpeachment, não por razões jurídicas sobre a responsabilidade, mas por interesses pessoais dos grupos políticos, com a finalidade de obter o poder, mas também por vingança de um e ódio de outros devido à perda de várias eleições seguidas ou ainda para fugir à persecução penal, o que caracteriza indisfarçável desvio de poder.
Ignorando a atipicidade e a falta de ação, “primeiro elemento do fato típico” e “movimento corporal voluntário”125, o Relator se contenta em supor, sem concatenar e provar com fatos, não ser “razoável” que a acusada não soubesse da contabilidade do Tesouro com os bancos públicos na execução do Plano Safra. Suposições e cogitações estão fora do âmbito do direito incriminador.
O Relator especula sobre o “contexto eleitoral”, mostrando descontentamento a respeito de algo estranho à acusação. O Relator opta por receber uma denúncia inepta, quando, por dever legal, deveria recomendar a absolvição sumária, uma vez “que o fato narrado evidentemente não constitui crime” (art. 397 do CPP) e não está descrita uma ação típica da acusada (art. 41 do CPP).
O Relator informa que a acusada alegou erro de tipo, erro de proibição, inexigibilidade de conduta diversa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de direito e excludentes da ilicitude. Mas, no afogadilho, não perde tempo com elas. As teses da defesa não estão no seu horizonte, são desconsideradas, são desimportantes. Há, nos termos do art. 93, IX, da CF, “nulidade absoluta”126 por “falta de motivação”127, pois, embora tenha relatado as teses da defesa, não as examinou, deixando os Senadores no escuro.
Para a doutrina processual penal, como garantia, a
motivação se assenta em três pontos básicos: “primeiro, aparece como

125 Manoel Pedro Pimentel, Do crime continuado, RT, São Paulo, 1969, p. 10.
126 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 160.
127 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 158.
garantia de uma atuação equilibrada e imparcial do magistrado, pois só através da motivação será possível verificar se ele realmente agiu com a necessária imparcialidade; num segundo aspecto, manifesta-se a motivação como garantia de controle da legalidade das decisões judiciárias; só a aferição das razões constantes na sentença permitirá dizer se esta deriva da lei ou do arbítrio do julgador; finalmente, a motivação é garantia das partes, pois permite que elas possam constatar se o juiz levou em conta os argumentos e a prova que produziram: como visto, o direito à prova não se configura só como direito a produzir provas, mas também como direito à valoração da prova pelo juiz.”128 É desnecessário dizer que os Senadores são, no caso, juízes. Como no desvio de poder de Eduardo Cunha, a leitura do Relatório não permite saber, primeiro, em quais fatos se fundam os argumentos da defesa, e, segundo, o que o Relator pensa dos tópicos (“omissão das razões do convencimento”129). Elemento principal do circle of learning, a motivação “completa o sistema circular de garantias para a justa decisão”130.
A inépcia do Relatório decorre ainda da falta de narração de atos que “atentem contra a Constituição Federal”. Criaram-se crimes de responsabilidade in progress, que seguem os ballons d’essailançados pela imprensa, o que fere o princípio da correlação final entre aacusação e a sentença. Por ele, a denúncia narra o fato e a decisão o leva em consideração. É o evento naturalístico que identifica processualmente as ações penais. Nas palavras de Hélio Tornaghi, “a correlação deve existir entre o fato descrito na denúncia (ou queixa) e o fato pelo qual o réu é condenado.”131 Para a doutrina, “No processo penal é fundamental a identificação da causa petendi, consubstanciada no fato imputado ao réu.”132 Não se permite condenação por fato não descrito. Assim, de capital importância, “também chamado da congruência da condenação com a imputação, ou, ainda, da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença, liga-se ao princípio da inércia da jurisdição e, no processo penal, constitui efetiva

128 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 159.
129 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 160.
130 Antônio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, Editora RT, 1997, nota 15, p. 164, citando Alfredo Bargi (Procedimento probatório e giusto processo, Napoli, Jovene, 1990).
131 Hélio Tornaghi, Curso de processo penal, vol. 2, ed. Saraiva, 1990, 7.ª edição, p. 169.
132 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 167.
garantia do réu, dando-lhe certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de se defender da acusação.”133
A incongruência maior do Relatório diz respeito à afirmação de que o dolo da acusada para “postergar o pagamento” dos supostos débitos seria “em favor de interesses partidários”. Mas retroativos à eleição? Como se defender da acusação de ter praticado algo que não existiu? É incongruente também o silêncio eloquente do Relator sobre vários pontos controvertidos da questão.
Por fim, o Relatório não explica a cautelaridadeda medida. Sendo a decisão do impeachment “algo semelhante a uma sentença de pronúncia”, uma “medida processual provisória”134 que “exerce a função de garantia, em tudo análoga à da prisão preventiva”135, não há, minimamente, explicações sobre o periculum in mora e o fumus boni juris. Weber Martins Batista nos ensina que, “Em razão do primeiro, a providência só deve ser concedida se a demora do processo efetivamente põe em risco o bem jurídico que se procura assegurar. Não é suficiente o perigo genérico, meramente possível, derivado do simples fato da duração do processo; é preciso que existam elementos concretos, com base nos quais se possa, razoavelmente, supor que seja provável a transformação do dano temido em dano efetivo. Em razão do segundo, a providência só se justifica se provável ‘o resultado favorável do processo principal para aquele a quem a medida beneficia’.”136
Portanto, exige-se para a prisão cautelar (art. 312 do CPP) os pressupostos de prova da materialidade e indícios de autoria (fumus boni juris) e os fundamentos da garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal (periculum in mora). Quanto à pronúncia (art. 413 do CPP), o juiz decidirá sobre a existência de materialidade do fato eindícios suficientes de autoria ou participação. No processo de responsabilidade não é diferente.
Erroneamente, o Relator conclui pela existência de “indícios de materialidade e autoria”, quando, em verdade, apenas aprova da

133 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Editora Malheiros, São Paulo, 1992, p. 167.
134 Fábio Konder Comparato, “Crime de responsabilidade – Julgamento pelo Senado de Presidente da República que renunciou a cargo”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 211.
135 Fábio Konder Comparato, “Crime de responsabilidade – Julgamento pelo Senado de Presidente da República que renunciou a cargo”, Direito público: estudos e pareceres, ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 212. 136 Weber Martins Batista, Liberdade provisória, Ed. Forense, 2.ª edição, p. 7.
materialidade do crime, junto aos indícios suficientes de autoria, justificaria a medida. Nada obstante, a perícia técnica, que, não fosse a atuação perniciosa da maioria durante o trâmite do feito, deveria ter sido realizada antes do recebimento da denúncia, mostrou que inexistem ospressupostos (prova da materialidade e indícios de autoria) para a continuidade do processo.
O julgamento proposto pelos acusadores é umagrafe asebeias, “ação de impiedade”137, como Sócrates, por ofensa à Deusa Meta Fiscal. Invade-se a competência constitucional de outro Poder, limita-se a sua ação livre e lhe embaraça o legítimo exercício, segundo os critérios da pessoa eleita. Muito ao contrário, o que se exige é a compulsória contracautela, pois o Governo Provisório age descaradamente, sem responsividade138, já, como se definitivo fosse, criando todo tipo de confusão em políticas públicas vitoriosas há vários pleitos eleitorais.
As funções de acusar e julgar não permitem agentes envenenados, dos quais Bento Santiago é o protótipo, capazes de arranjos de “advocacia especiosa”, de “disposição suspeitosa” e de “ratoeira expositiva”. Na qualidade de “detentor da palavra” e “narrador unilateral” do romance139, Bento Santiago, “protagonista tendencioso”, tendo Ezequiel como único e questionável indício, vale-se de “raciocínios truncados, precisões que se diriam supérfluas, interpretações descabidas, fórmulas anódinas, procedimentos artísticos descabidos”140, “com a finalidade de condenar a mulher”141. Em Bentinho, e na mente de todos os julgadores contaminados, “não sobra lugar para a hipótese da inocência.”142
– Falseamento da liberdade de consciência no exercício do julgamento individual e desvio dos propósitos constitucionais do processo impeachment e do processo de responsabilidade em razão da ostensiva campanha eleitoral feita pelo Vice-Presidente da República e

137 Claude Mossé, O processo de Sócrates, tradução de Arnaldo Marques, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990, p. 105.
138 Pedro Lomba, Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 90 e seguintes.
139 Roberto Schwarz, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, Duas meninas, Companhia das Letras, 1997, pp. 12, 13 e 17.
140 Roberto Schwarz, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, Duas meninas, Companhia das Letras, 1997, pp. 12 e 15.
141 Roberto Schwarz, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, Duas meninas, Companhia das Letras, 1997, p. 16.
142 Roberto Schwarz, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, Duas meninas, Companhia das Letras, 1997, p. 15.
sua factio. A incompatibilidade lógico-jurídica entre o prosseguimento do julgamento no Senado e a decisão do Supremo Tribunal Federal que afastou tardiamente o senhor Eduardo Cunha da Presidência da Câmara. Inversão de valores, contracautela e reversão da injustiça
O círculo compreensivo do golpe palaciano se fecha com a ausência de plena liberdade de consciência no julgamento parlamentar. Por meio de coação partidária e de estímulos extrapartidários promoveram-se desvios nos propósitos constitucionais originais doimpeachment e do processo de responsabilidade em razão de uma traiçoeira eleição indireta feita pelo Vice-Presidente da República, por membros do seu Partido e de Partidos aliciados.
Não há maior desvio de finalidade concebível do que transformar os processos de impeachment e de responsabilidade numaeleição indireta para Presidente da República. Esta prática não implica apenas numa fraude contra os direitos subjetivos da pessoa eleita e de seu Partido Político, sufragado pelas urnas, mas num Golpe Parlamentar contra os direitos públicos subjetivos do conjunto de eleitores, que representam asoberania popular.
Os Congressistas deveriam cumprir com decoro seus deveres constitucionais de judicial power na condução, instrução e julgamento de fatos individualizados e tipificados de responsabilidade política. Há, ou não, fundamento para a responsabilidade política de acordo com o due process of law? Esse é o único objetivo.
Mas, ao contrário, o escopo legal foi deixado de lado para subverter a ordem político-constitucional e obter um mandato ilegítimo para uma facção incrustada no seio dos Poderes Legislativo143 e Executivo, apoiada por setores e agentes do Estado, com o respaldo dos meios de comunicação de massa.

143 Isso não é novidade. Segundo Pedro Lomba, “o impeachment conduzido pelo Senado dos Estados Unidos em 1999 contra o antigo Presidente americano, Bill Clinton, não foi só um processo dirigido contra a mais alta figura do Estado Federal americano que teria, alegadamente, cometido perjúrio e obstrução da justiça. Foi também, como se poderá constatar por uma das mais completas análises feitas a esse processo (Richard Posner, An Affair Of State – the investigation, impeachment and trial of President Clinton), um momento em que uma facção da política americana tentou vergar aquele Presidente a uma particular agenda política e moral.” (Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 14).
Segundo as ponderações feitas há séculos por James Madison, os facciosos não podem ser juízes de sua própria causa (No man is allowed to be a judge in the his own cause; because his interest would certainly bias his judgment, and, not improbably, corrupt his integrity.144). Imbuídos de conscientia fraudis, eles romperam com o Governo do qual faziam parte em um dia para, no outro, juntarem-se à oposição e votarem em si mesmos para substituir o Governo eleito. O Vice-Presidente, o ex- Presidente da Câmara e o Presidente do Senado são do PMDB. O Relator do processo na Câmara é um feudatário do Presidente da Câmara, e, fechando o cerco da deposição, o Relator do processo no Senado é do mesmo Partido que pagou pela acusação. É inconcebível maior parcialidade. O julgamento é nulo, pois sua integridade está corrompida.
A nulidade dos procedimentos decorre de três razões imbricadas, as quais, em conjunto, mostram o comprometimento do Tribunal com o resultado do julgamento. A deslealdade dos atores processais durante a instrução. A estreita ligação entre acusadores ejulgadores. E a deturpação da liberdade de julgamento por alguns Camaristas e Senadores.
Por ser o Senado o Tribunal Constitucional do caso, o art. 23 da Lei 1.079/50 estabelece, que, “Encerrada a discussão do parecer, será o mesmo submetido a votação nominal, não sendo permitidas, então, questões de ordem, nem encaminhamento de votação.” Não foi isso que aconteceu. Como blocos facciosos, os Partidos exerceram pressão ilegal sobre os parlamentares, ameaçando-os com expulsões e fechando questão interna para que votassem num ou noutro sentido. A atitude ofende o direito constitucional do cidadão de ser julgado por um juiz imparcial, que olhe o processo objetivamente e dê “as razões da formação de seu convencimento” (art. 371 do CPC). Em muitos casos, houve prejulgamento, pois os parlamentares não se resguardaram, discutindo abertamente suas posições. Não é uma questão de ser contra ou a favor deste ou daquele “candidato”, mas de estrita tipicidade, ou não, ilicitude, ou não, culpabilidade, ou não.
Por dever, os parlamentares estão na condição de juízes. E a imparcialidade é uma obrigação tanto daquele que acusa (“guarda

144 James Madison, The Federalist, number nº 10, Encyclopaedia Britannica, University of Chicago, Twenty-third printing, 1980, p. 50.
inflexível da lei”) quanto do que julga (“objetividade sem paixão”145) em nome do Estado. E nenhum poderia estar em conflito com a acusada.
De um lado, a defesa técnica é levada à condição de irrelevância pelos Relatores. De outro, há promessas de regressão de direitos e de sedução de parlamentares pela entrega de cargos na Administração Pública direta e indireta, matéria que é a especialidade dos senhores Vice-Presidente da República e ex-Presidente da Câmara.
As atuações do Presidente da Câmara dos Deputados e do Vice-Presidente da Republica nada têm de republicanas. São negociantes do poder no presidencialismo de colusão que pretendem instalar. Não buscam o interesse comum da Nação, mas os próprios. O primeiro quer a vingança e a preservação do mandato. O segundo, a eleição presidencial pela via indireta. Representam o que James Madison denominou dangerous vice, pois são adversaries to liberty e promotores deinstability, injustice, and confusion146.
Para além do trato criminoso que Eduardo Cunha impôs na condução da Presidência da Câmara, o papel do Vice-Presidente da República, Michel Temer, committere in legem, mostrou um indecorosoatuar faccioso, incompatível com os preceitos democráticos da Constituição. Ele e seus sequazes agiram às claras, fizeram campanha, arregimentaram de forma inescrupulosa adeptos no Congresso Nacional e nos Partidos de oposição, formularam Programa de Governo, cantaram a vitória por meio de discursos que eles mesmos vazaram para a imprensa para encorajar indecisos e infiéis, escolheram Ministros entre os seus aliados, além de terem feito conciliábulos no exterior para tentar dar a credibilidade e a respeitabilidade que o grupo que trabalhou para a consumação do coup d’État147 não tem.
Tudo é inadequado. O deslocamento do motivo real das Assembleias, qual seja, a deliberação fundamentada sobre a existência, ou não, de infrações político-administrativas atentatórias à Constituição, e não a

145 Piero Calamandrei, Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, tradução de Ary dos Santos, Livraria, Clássica Editora, 4.ª, edição, Porto, 1971, p. 59.
146 James Madison, The Federalist, number n.º 10, Encyclopaedia Britannica, University of Chicago, Twenty-third printing, 1980, p. 49.
147 Carlos Barbé, “Golpe de Estado”, na obra Dicionário de política, de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, 3.ª edição, tradução de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1991, vol. 1, p. 545.
escolha de um novo Presidente. O desvio de finalidade do poder congressual. O uso do julgamento para fins diversos dos previstos.
Não é factível que, subitamente, o Vice-Presidente tenha passado a ter interesses diferentes dos do Governo com o qual se elegeu, e do qual aproveitou até à última gota de sangue fisiológico. Evidencia-se a traição e a ambição desmedida de ultrapassar os limites constitucionais, visto que seu grupo não atingiria a Presidência pelo voto popular. Na concepção de Bismarck, os facciosos são crianças grandes atacando o Estado, crianças que não sabem diferenciar o que é politicamente possível do que é impossível.
No caso, aproveitando-se de sua bem conhecida base congressual fisiológica, o Vice-Presidente, em mancomunação com o ex- Presidente da Câmara, com membros de seu Partido e políticos de oposição vencidos, frustrados e vingativos tornaram-se partes e juízes dos próprios interesses. É certo que a República brasileira precisa ser repensada, mas, no caso, antes disso, ela deve ser protegida. A República não pode ser refém do conluio de poucos que atentam contra a democracia, sem nenhum pudor. A configuração da Câmara e do Senado permitiu que a facciosidade prevalecesse sobre os interesses da Nação, por meio de um fisiologismo repugnante, que deixou o mundo civilizado sobressaltado.
O art. 144 do CPC é claro ao dispor que háimpedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo, “quando for parte no processo ele próprio [...]”, “quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica parte no processo”, “quando promover ação contra a parte [...]”. O PSDB é parte no processo, pois pagou alguém para fazer a denúncia. O Relator é filiado ao Partido, o que o equipara a sócio ou associado para as finalidades da lei. E o Partido move ação no Tribunal Superior Eleitoral contra a Presidente. Os incisos se aplicam ao caso. Da mesma forma, o art. 145 do CPC esclarece que há suspeição do juiz que for “interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. Da mesma forma, o art. 254 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz poderá ser recusado pelas partes “se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo”. Se o seu Partido pagou alguém para fazer a denúncia, o Relator não irá contrariá-lo. Não há uma República, como nos ensinou James Madison, quando os interesses não são públicos, quando não há objetividade, mas tão-só interesses de uma factio suprapartidária formada nas franjas da legalidade. O art. 564, I, do Código de Processo Penal, é claro ao estabelecer que é nulo o processo por suspeição do juiz.
Que garantia temos nós do povo diante desta sanha? Da forma como está sendo conduzido o processo, a soberania popular será sempre refém de outras camarilhas que venham se formar nas bordas do Congresso Nacional, desde que sejam conduzidas por um criminoso qualquer e por atrevidos de toda sorte. Golpe constitucional editadura constitucional são filhos diletos do estado de exceção, contrários ao Estado de Direito. Não são republicanos, não são democráticos, não são constitucionais.
Não há atalhos na democracia. A Presidente eleita não pode ser usada como o cavalo que será sacrificado após levar o grupo faccionário ao poder ilegítimo. Apenas eleições livres e periódicas,voto direto e secreto e sufrágio universal dão legitimidade aos governos, jamais o tapetão ou a cartolada, recorrente em clubes e federações de futebol e outros esportes.
A interferência externa indevida é tão clara que os conspiradores sequer a esconderam. Basta a leitura da matéria “G-8 doimpeachment teve reuniões durante um ano”148. Não é um processo espontâneo da sociedade, mas induzido pelo Partido Circunstancial doImpeachment. A prova da conspiração palaciana está num momento de desembaraço do Deputado Benito Gama: “as três maiores peregrinações do mundo são a de Fátima, a de Aparecida e a do Palácio do Jaburu. Este é, por enquanto, o bunker do vice-presidente Michel Temer.”
O comportamento abusivo, tracônico e sorrelfo do Vice-Presidente da República, incompatível com o decoro exigido para o exercício do cargo é confirmado pela revista Carta Capital (27 de abril de 2016, p. 23), segundo a qual, Michel Temer “Converteu o Palácio do Jaburu, sua residência oficial, no QG da conspirata, a ponto de ter posado sorridente para fotos entre amigos enquanto a Câmara aprovava oimpeachment”.
A participação desleal do Vice-Presidente é um fato notório: “Na semana que passou, o grupo de Heráclito o recepcionou duas vezes. A primeira, muito restrita, foi na terça, com 14 parlamentares presentes na casa do senador Jarbas Vasconcelos. Temer ouviu um relato e uma avaliação de como estavam as coisas. Gostou – sem arroubos. Na segunda, na quinta-feira, foi na casa da filha de Heráclito, no Lago Sul – uma espécie de reunião ampliada do núcleo de inteligência, com cerca de 80 presentes. O

148 O Estado de São Paulo, 17 de abril de 2016, pág. A12.
vice-presidente manteve a contenção. ‘Não queremos criar um clima de já ganhou’, disse Raul Jungmann, que lá esteve.” Nas palavras de Raul Jungmann, o grupo “Foi um estado-maior informal do impeachment, reuniões onde se preparava o cardápio do que iria ser servido”. Da mesma forma, segundo Pauderney Avelino, que, na sala de imprensa de seu gabinete, possui um gráfico que “martela, no computador, uma estrela vermelha, o símbolo do PT. O artista experimenta várias formas de marteladas. A ideia é que a estrela esteja totalmente esmigalhada, e a imagem pronta para a capa do boletim diário, na hipótese de o impeachment passar. Avelino vai aos jantares desde o começo: ‘O Heráclito é o meu socialista predileto’, diz. ‘O grupo que ele montou foi muito importante no momento em que estávamos num turbilhão, e sem uma direção certa. Foi lá que o impeachment foi tomando corpo.”149Conhecedor dos meandros da conspiração, o jornal O Estado de São Pauloinformou que os “aliados” de Michel Temer150 tramam para acelerar o processo, para que não haja o recesso parlamentar.
O depoimento do Deputado Aliel Machado, membro da Comissão Especial da Câmara, é uma prova da campanha desonesta feita pelo Vice-Presidente da República e pelo Presidente da Câmara a favor do impeachment que os beneficiará, e que transformou o processo administrativo, que deveria ser objetivo, isento e imparcial, numa campanha indireta para o cargo de Presidente da República. Segundo o Deputado, o Vice-Presidente conversa abertamente com os demais Deputados sobre a campanha, indo até aos Estados conversar com os “eleitores”.
Contrário a tudo o que foi feito, do ponto de vista político, segundo Umberto Cerroni, a democracia é, a um só tempo, ênfase na soberania popular, nos procedimentos regulares, nas liberdades individuais, na igualdade de condições para o exercício do poder e na participação de todos na construção das leis151. Mas no falso impeachmente no simulado julgamento, contudo, os atos dos conspiradores atropelam os procedimentos regulares da democracia, deixando um rastro de infâmia e um sentimento de consternação no mundo democrático civilizado.
As diferenças de comportamento entre o Presidente Itamar Franco e o Vice-Presidente Michel Temer são perturbadoras. No dia 27

149 O Estado de São Paulo, 17 de abril de 2016, pág. A12.
150 O Estado de São Paulo, 30 de abril de 2016, pág. A4.
151 Umberto Cerroni, Política, métodos, teorias, processos, sujeitos, instituições, categorias, trad. de Marco Aurélio Nogueira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1993, p. 59.
de setembro de 1992, o jornal Folha de São Paulo noticiava que “Itamar assume silêncio e evita publicidade. [...] passou a semana ‘exilado’ em um sítio próximo a Juiz de Fora, oficialmente longe das articulações políticas.” Já no dia 14 de abril de 2016, o jornal O Globo informou: “Aliados de Temer engarrafam entrada do Palácio [...] Somente entre as 15h e as 19h, 71 carros passaram pela portaria do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice- presidente.”
Em 30 de março de 2015, pelo twitter (@MichelTemer), o Vice-Presidente disse: “O impeachment é impensável, geraria uma crise institucional. Não tem base jurídica e nem política.” Mas já nesta época, por meio de seu grupo, atentava silenciosamente contra a democracia, para, em 07 de dezembro de 2015, simular por carta o seu descontentamento com o Governo e propalar uma suposta “discrição institucional” que os fatos posteriores demonstram jamais ter tido. Por fim, “por engano”, em 11 de abril de 2016, o Vice-Presidente vazou um áudio destinado ao pós impeachment, novamente simulando uma “cautela” e um “recolhimento” que até as águas do Paranoá sabem quão falsas são, como mostrou a matéria “G-8 do impeachment teve reuniões durante um ano” (O Estado de São Paulo, 17 de abril de 2016, pág. A12).
É fundamental para o equilíbrio da República que sejam refreadas as combinações facciosas, para evitar que voltem a coincidir os impulsos conspiratórios com as fragilidades circunstanciais da democracia, como agora se vê.