Filósofo explica o contexto histórico das posições políticas formadas no tempo de Luís 16, no final do século 18
Direita e esquerda são posições políticas originárias do lugar ocupado nas cadeiras da Assembleia Nacional Constituinte francesa, no tempo de Luís 16, os anos finais do século 18. Os representantes dos nobres, burgueses ricos e elementos do clero ficavam à direita. Eram os que não queriam grandes alterações na ordem social e política, que os beneficiava por meio de um sistema de privilégios.
Os representantes da pequena e média burguesia e de pessoas simpáticas a tais setores ficavam à esquerda. Eram os que desejavam o fim dos privilégios e uma reforma política e social que, segundo eles, tiraria a França da crise em que se encontrava, e em função da qual o rei havia convocado a Assembleia.
Com o tempo e por influência cultural e política da França, essa terminologia tipicamente francesa ganhou o mundo, sendo adotada inicialmente pelos jornais e, depois, pela mídia em geral. Desse modo, historicamente a expressão “direita política” passou a identificar o partido dos economicamente privilegiados, enquanto que a expressão “esquerda política” ficou como o partido dos menos privilegiados.
Assim, em termos históricos, direita e esquerda não se definiram inicialmente pelas relações entre indivíduo, sociedade e estado, como em geral tendemos a pensar hoje em dia, mas segundo uma divisão entre a “política dos ricos” e a “política dos pobres”. No entanto, na política europeia (os Estados Unidos são um caso que deve ser analisado separadamente), os ricos diziam preferir um estado que viesse a garantir certos serviços essenciais, mas sem interferir muito diretamente nas forças econômicas e principalmente no mercado. Por sua vez, os pobres queriam auxílio compensatório, tirados de todos por meio de impostos e administrados pelo estado, para a amenização dá má sorte na loteria do nascimento.
Desse modo, a direita ficou sendo uma posição alheia ao crescimento do estado diante da sociedade, enquanto que a esquerda se torno uma posição de endosso da maior participação do estado na vida social. A democracia liberal ficou sendo a direita, enquanto que as posições ligadas à social-democracia se mostraram como sendo a esquerda.
No decorrer do século 20, fenômenos ligados ao imperialismo alteraram um pouco esse quadro. Alemanha, Japão e Itália desenvolveram um desejo de participar do comércio internacional de forma imperialista, mas esse tipo de posição já tinha dono. Inglaterra, França e, de certo modo, os Estados Unidos já haviam repartido o mundo em três, exercendo toda forma de neocolonialismo. A ideia que Alemanha, Japão e Itália tiveram, então, foi uma só: quebrariam a ordem liberal interna de seus estados e os colocariam em função de algumas empresas de alguns grupos de pessoas ricas, e assim fazendo teriam empresas poderosas, capazes de competir com aquelas exclusivamente privadas das democracias liberais. Além disso, sempre pensando que talvez não pudessem competir de igual para igual, esses países se militarizaram e quiseram abrir espaço para o comércio com os povos neocolonizados na base da força. Iniciaram então a invasão de países próximos, em busca de um confronto direto com aqueles que então dominavam comercial e industrialmente o mundo. Isso resultou na II Guerra Mundial.
Nasceu dessa posição militarista aquilo que veio a se tornar genericamente a “política do fascismo”. Uma potência fascista, então, passou a ser aquela constituída como um estado totalitário militarizado, protetor das empresas capitalistas e empresas estatais de seu país, baseado em uma hierarquia de poder e privilégios, dos quais participariam não todos os ricos, mas especialmente aqueles que fossem simpatizantes do governo fascista, comandado por um ditador. Esse tipo de posição assumiu-se como “de direita”, é claro, uma vez que se tratava de exercer uma política voltada para os setores dominantes e ao mesmo tempo para o estado, sendo que este se punha como protetor e protegido desse grupo social, ainda que, é claro, se proclamasse protetor de toda a nação.
No século 20, antes mesmo do surgimento do fascismo, a esquerda também ganhou uma vertente totalitária. A social-democracia defendia a participação do estado na economia em função da melhoria da vida dos mais pobres. Trabalhava, no entanto, com a perspectiva de reformas que apontavam para uma sociedade socialista, assumido como um objetivo posto em um horizonte distante, às vezes quase assumidamente utópico. Um setor da esquerda chamou a esse tipo de política de “projeto reformista”, e acusou-o de ser incapaz de realizar o socialismo (o regime que encaminharia para o comunismo, com o fim das classes sociais). Aliás, esses dissidentes passaram a dizer que a social-democracia nem mais queria o socialismo, mas apenas o próprio capitalismo continuamente reformado. O socialismo, ainda segundo esses dissidentes, teria de vir por meio de uma revolução que colocaria toda a economia nas mãos do estado, de modo que este, então, organizaria a produção, a circulação e o consumo. Além disso, o estado retiraria os meios de produção das mãos dos ricos, e com isso iniciaria a transformação de toda a sociedade em uma “nação de trabalhadores”. Sendo todos só trabalhadores, não haveria mais sentido falar em classes sociais, e eis que se estaria aí já no interior do socialismo. A mundialização desse processo eliminaria as classes sociais de todos os lugares, os poderes organizativos de cada estado se tornariam poderes regionais de um só grupo – a humanidade – e isso implicaria no fim dos estados nacionais. Estar-se-ia, então, no comunismo.
Esse Estado socialista que estaria se encaminhando para o comunismo, exerceria uma ditadura transitória, revolucionária (a “ditadura do proletariado”), para poder retirar à força os meios de produção de seus donos. Feito isso, esse estado iria se encaminhando do socialismo para o mundo do comunismo. Ao menos nas vozes de seus progenitores, essa situação intermediária, e muito menos a situação final, não se configurariam como regimes totalitários. Ao contrário, o comunismo seria o regime da mais alta e perfeita democracia, ainda que uma democracia sem política.
Não havendo mais ricos e pobres não haveria sentido falar em partidos ou divergências internas em uma tal sociedade e, portanto, o termo “política” perderia o sentido, pois não haveria mais uma disputa de poder, e sim uma forma de organização colaborativa entre os trabalhadores internos a uma burocracia organizativa e os trabalhadores internos às fábricas e fazendas.
Dito tudo isso acima, o que se pode concluir?
Uma conclusão importante: é uma tolice dizer que não existe direita democrática ou esquerda democrática. Liberais democratas são, em princípio, democratas. Social-democratas são, em princípio, democratas.
Segunda conclusão: não é nada bom tornar direita e esquerda posições indiferenciadas quando optam por regimes não democráticos. É pouco inteligente apostar que direita e esquerda, ao se verem sob totalitarismo, terão igual funcionamento, ainda que, por causa do avanço do estado sobre a sociedade, as liberdades individuais padeçam nesses regimes, tornando-os insuportáveis.
*Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ – http://ghiraldelli.pro.br
<