Um dia no tribunal
Um dia no tribunal
Ainda era cedo de manhã, mas Pôncio Pilatos, o governador romano da Judéia, já se deparava com uma lista cheia de causas a serem julgadas. Ele não queria ser incomodado com as intrigas do sumo sacerdote dos judeus e seu conselho de anciãos, o Sinédrio. Na Judéia sempre faz calor desde o início do dia e Pilatos já estava suado e irritado, antes mesmo que os membros do conselho judaico se apresentassem diante dele arrastando consigo aquele profeta judeu, pregador do deserto ou seja lá o que fosse.
Pôncio Pilatos costumava ficar no palácio de Herodes quando visitava a cidade de Jerusalém. Era a ocasião em que os judeus celebravam uma de suas festas religiosas e ele começava a ter uma sensação de que esse era um caso do qual não conseguiria se esquivar. É verdade que ele odiava Jerusalém, bem como os judeus com seus costumes religiosos e suas prescrições insuportáveis, além de odiar a atitude obstinadamente defensiva desse povo no que dizia respeito ao seu templo. Porém, ele sabia que não podia correr o risco de melindrar o Sinédrio, sem dúvida, não agora. Afinal de contas, uma multidão de judeus se reunira do lado de fora do Pretório, junto com os principais sacerdotes e sua ordem religiosa de mestres da Lei. Eles não sairiam dali enquanto ele não julgasse o caso daquele sujeito chamado Jesus.
Quando Pilatos olhou para o acusado, que estava diante dele manietado e quieto, percebeu que uma “justiça brutal” já tinha sido administrada contra tal homem. As vestes de Jesus estavam rasgadas e era evidente que ele tinha sido espancado.
Não há nada de estranho nisso, pensou Pilatos. A não ser por uma coisa. Algo relacionado com o comportamento daquele homem. Será que se poderia chamar aquilo de dignidade? Dificilmente. Um pregador errante; vestido de trapos. Bem, o que quer que fosse, começava a enervar Pilatos. O governador se sentia cada vez mais pressionado a tomar uma decisão. Mas aquele homem, em pé diante dele com um olhar sereno e implacável, sem um pingo de medo ou ansiedade, apesar de ensangüentado e de provavelmente ter que enfrentar a pena de morte, tornava a situação ainda mais difícil.
Com o objetivo de fazer uma |
Pilatos não podia ajudar; só conseguia relembrar seu histórico mal-sucedido em Jerusalém. Ele tinha sido convocado à Judéia para reassumir o controle da região. Seu antecessor, Arquelau, um dos filhos de Herodes, o Grande, cometeu um erro sórdido na tentativa de governar aquele território. Esse governante herodiano enviara suas tropas aos pátios do templo a fim de controlar uma rebelião violenta e acabou por massacrar três mil pessoas. Poucas semanas depois, Arquelau ausentou-se tranqüilamente de Jerusalém para fazer uma viagem a Roma e outra rebelião estourou. Essa última insurreição foi, finalmente, subjugada pelos romanos, depois que estes crucificaram dois mil habitantes locais ao redor das muralhas da cidade. Pilatos pensava que podia fazer melhor. Afinal de contas, quando ele chegou a Jerusalém, pela primeira vez, na qualidade de governador, pensara consigo mesmo: César exige paz e ordem nos territórios de sua ocupação – e eu estou pronto a oferecer-lhe o que exige.
Mas, então, a realidade chegou. Pilatos, na intenção de sufocar um distúrbio, teve de enviar tropas para dentro da área do templo, as quais mataram muitos galileus, de modo que o sangue destes, derramado sobre o piso pedregoso, acabou por se misturar com o sangue dos animais que tinham acabado de ser sacrificados.
Em seguida, aconteceu o fiasco dos estandartes. Com o objetivo de fazer uma demonstração de força em Jerusalém e assumir o controle pela intimidação, Pilatos, na calada da noite, ordenou que suas tropas hasteassem estandartes ou bandeiras romanas no contorno de uma determinada área, todas elas com a imagem de César estampada. Ele nem se importou com o fato de que levantara imagens “idólatras” nas proximidades do templo. Como resultado, irrompeu outra rebelião.
Dessa vez um enorme contingente de judeus marchou na direção norte até o quartel-general de Pilatos em Cesaréia e exigiu que os estandartes romanos com a imagem de César fossem removidos. Naquele momento, quando Pilatos deu ordens para que seus soldados se dirigissem contra a turba de judeus, os últimos homens da multidão descobriram seu pescoço, desafiando o governador a matá-los. Até mesmo os centuriões ficaram impressionados.
Pilatos ficou ainda mais intimidado quando se lembrou da maneira pela qual teve de voltar atrás. Contudo, o que mais ele poderia fazer? A sobrevivência política nesse território abandonado da Judéia obviamente exigia sutileza diplomática, algo que ele considerava insultante. Ele preferia a força bruta. Era mais rápido – mais objetivo. Entretanto, Roma desejava a estabilidade naquela região. Agora Pilatos perguntava a si mesmo se algum dia isso seria possível.
Ele encarou Jesus outra vez. Aquele judeu tinha acabado de confessar que era um “rei”. Mas Pilatos era esperto o suficiente para saber que aquele rabi (mestre) itinerante falava acerca de alguma espécie de reino religioso – não de um reino político. Os principais sacerdotes o constrangiam a usar sua autoridade para sentenciar o acusado à pena capital, pela alegação de que Jesus cometera traição. Porém, Pilatos sabia que, pelo rigor da lei romana, aquele homem não representava risco nenhum de provocar uma revolta.
Então ele ouviu o grito de um dos escribas (ou era um dos sacerdotes? Talvez ele fosse ambas as coisas) que dizia algo sobre o modo pelo qual Jesus incitara o povo na Galiléia. Pilatos pensou: Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia, está aqui em Jerusalém para a festa. Esse Jesus procede do território que está sob a jurisdição de Herodes. Que Herodes julgue esse caso. Por que deveria eu decidir tal questão?
Nesse momento, ao dar novamente uma olhada em Jesus de Nazaré, o governador romano finalmente começou a esboçar um sorriso, que desapareceu de seu rosto quando ele contemplou os olhos fitos de Jesus nele como uma chama de fogo que arde no papiro seco, queimando a fina cobertura que ocultava as motivações políticas de Pôncio Pilatos.
Diz a história
Esse enredo dramático pode ou não refletir com exatidão os mais íntimos pensamentos de Pilatos. Contudo, é coerente com o relato dos quatro Evangelhos e com consideráveis registros da história antiga acerca do julgamento romano de Jesus.
Afinal, duvidar da historicidade do julgamento de Cristo perante Pilatos é o mesmo que questionar se a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Dred Scott antes da Guerra da Secessão.
A existência histórica do Sinédrio é evidente e a família dos Herodes está solidamente comprovada nos escritos do historiador judeu Flávio Josefo, o qual também escreveu sobre o julgamento de Jesus perante Pilatos. A identidade do governador romano é atestada até mesmo fora dos relatos bíblicos e nos registros de Josefo.
Nos idos de 1950, numa escavação em Cesaréia, onde se localizava a residência oficial de Pilatos, descobriu-se uma inscrição em pedra. Embora uma parte dela tenha se perdido, as seguintes palavras ainda podiam ser lidas nitidamente: “Pôncio Pilatos, o Governador da Judéia”.
Já ouvi a argumentação daqueles que duvidam da Bíblia, alegando que a prática de Pilatos em conceder à multidão o direito de escolha, pelo voto verbal, entre Jesus e Barrabás, mencionada nos quatro Evangelhos, não era usual, nem histórica. Contudo, essa prática de indultar ou perdoar criminosos pelo voto popular realmente existiu. Um papiro do primeiro século (Papirus Forentinus), originário do Egito sob a ocupação romana, trouxe à luz que a mesma prática foi usada no ano 85 d.C.
Uma amizade misteriosa
O processo judicial romano reconhecia o direito de ficar em silêncio e a inocência do acusado até que se provasse o contrário. Antigos registros daquela época, transcritos de processos civis romanos, demonstram uma semelhança impressionante com o processo judicial nas cortes de justiça atuais.
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Entretanto, há uma pergunta intrigante que nem as Escrituras Sagradas nem a história responderam. Após Pilatos ter enviado Jesus a Herodes para que este desse continuidade ao processo judicial, por que razão a Bíblia declara: “Naquele mesmo dia, Herodes e Pilatos se reconciliaram, pois, antes, viviam inimizados um com o outro” (Lc 23.12). Será que Herodes simplesmente desejava ser cordial? Isso parece pouco provável. O antigo escritor Fílon [de Alexandria, c. 20 a.C. - 50 d.C.] relatou que certa feita Pilatos instalou seus escudos distintivos dourados no palácio de Herodes. Herodes Antipas, ultrajado por tal situação, registrou uma queixa perante Tibério César, o qual ordenou que Pilatos removesse seus escudos daquele palácio. Com essa inimizade amargurada entre eles, só mesmo um motivo extremamente interesseiro, que garantisse o benefício de ambos, poderia ter curado a ruptura. Então, será que houve, de fato, uma conspiração entre Herodes e Pilatos? Se a resposta for afirmativa, contra quem seria?
Há uma possível explicação. Jesus permaneceu calado perante Herodes. Herodes o mandou de volta a Pilatos, porque não achou nele crime algum “digno de morte” (Lc 23.15). No entanto, segundo o texto de Atos 4.27, tanto Herodes quanto Pôncio Pilatos se voltaram contra Jesus. Ao harmonizarem-se tais versículos, chega-se à seguinte possibilidade: Herodes, embora desejasse secretamente livrar-se de qualquer pessoa (em especial, de Jesus) que representasse uma ameaça às suas ambições políticas, talvez tenha pensado que podia usar Jesus como um joguete, um peão no seu magistral jogo de xadrez – com o intuito de dar o xeque-mate no poder crescente do sumo sacerdote e do Sinédrio. Ao mesmo tempo, Pilatos queria simplesmente evitar mais uma decisão impopular e pode ter visto Herodes como um expediente de auxílio. Afinal de contas, Pilatos era uma pessoa moralmente baixa, além de ser um pragmático cruel.
O grande veredito
A despeito dos motivos de ambos, nem Herodes nem Pilatos conseguiram o que desejavam. Herodes, posteriormente, foi deposto por Calígula no ano 39 d.C. e Pilatos, depois de muitos fracassos, foi substituído em sua função de comando por ordens de Roma.
Todavia, Jesus, condenado sem razão e cruelmente crucificado, foi sepultado no túmulo de um homem rico e, três dias depois, ressuscitou triunfalmente.
A tarefa de Pilatos, como governador romano, era a de exercer justiça. Mesmo nos territórios de ocupação romana esperava-se que a justiça prevalecesse. O processo judicial romano reconhecia o direito de ficar em silêncio e a inocência do acusado até que se provasse o contrário. Antigos registros daquela época, transcritos de processos civis romanos, demonstram uma semelhança impressionante com o processo judicial nas cortes de justiça atuais: a presença dos advogados, a apresentação das provas documentais e testemunhais, bem como a formulação de elaborados argumentos legais. Pilatos, porém, desconsiderou todas as salvaguardas, ao permitir – e até mesmo ordenar – a execução de um homem que ele mesmo já tinha declarado inocente de qualquer crime passível de morte (Lc 23.14-15,22).
A última interrogação de Pilatos a Jesus registrada nos Evangelhos, pergunta essa que deve ter sido feita num tom de frustração e arrogância ultrajante, foi a seguinte: “Não sabes que tenho autoridade [poder] para te soltar e autoridade para te crucificar?” (Jo 19.10). Mas a resposta de Jesus a Pilatos deve ter penetrado até a medula, quando ele lembrou ao governador romano que Deus é o Outorgante Supremo da autoridade (v. 11). A partir de então, Pilatos redobrou seus esforços para evitar que o fiasco legal e político se desenrolasse na sua presença, mas tudo foi em vão (v. 12).
Entretanto, Jesus não foi morto por causa do fracasso de Pilatos em exercer justiça, nem por causa da conspiração de Herodes, nem mesmo em virtude da má fé de seus acusadores ligados ao Sinédrio. O sangue de Jesus foi voluntária e propositalmente “derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28).
O princípio fundamental da justiça romana espelhava-se numa máxima popular (a qual, posteriormente, foi coligida nas Institutas de Justiniano) que Pilatos, sem dúvida, conhecia, mas optou por ignorar: “A justiça é o propósito determinado e constante de retribuir a cada um o que lhe é devido”. (Israel My Glory)
Craig Parshall é advogado de sucesso em Washington, D.C. (EUA) e autor de vários livros. Ele é casado com Janet Parshall, apresentadora de um conhecido programa de entrevistas.