Lealdade e Política
Daniel Lima
Nestes últimos dias, como nação fomos surpreendidos por um atentado a um dos candidatos à presidência. Todos os demais candidatos imediatamente emitiram declarações de repúdio ao ato, como convém à democracia e a um mundo minimamente civilizado. É interessante observar que rapidamente surgiram tanto teorias conspiratórias, denunciando o envolvimento deste ou daquele partido de esquerda, como comentários apontando que o candidato é responsável pelo ataque devido à sua postura, que promove hostilidades.
Até o momento, parece ser consenso que o agressor é uma pessoa desequilibrada e que, caso tenha tido alguma ajuda em seu ato, este não representa um apoio formal de qualquer agente político. É também verdade que casos assim não surgem do nada. O acirramento de posições, discussões acaloradas e acusações que rapidamente evoluem para ameaças são um terreno fértil para mentes perturbadas. A polarização política, fomentada nos últimos anos com discursos de luta de classes, ou combate a posturas ideológicas, não é um terreno seguro. Na verdade, sabe-se que a violência tem uma clara escala de crescimento. No caso da violência doméstica, uma agressão física é sempre precedida de ameaças e de agressões verbais. No meio político, um atentado é sempre precedido de discursos inflamados, ameaças veladas ou não e especialmente de um clima tenso.
Não é incomum ver homens que se apresentam como discípulos de Jesus apoiando e promovendo campanhas no mínimo discutíveis.
Muitos cristãos legitimamente ofendidos pelo teor das discussões e hostilidades se retiram da arena política convencidos de que não é possível defender o evangelho e se envolver em política ao mesmo tempo. Outros fecham os olhos e se entregam de modo apaixonado a um ou outro movimento político sem discernir nem o que pregam estes movimentos, nem os valores a partir dos quais norteiam suas ações. Não é incomum ver homens que se apresentam como discípulos de Jesus apoiando e promovendo campanhas no mínimo discutíveis, quando não abertamente anticristãs. Como proceder diante de um clima assim? Como navegar nestas águas da competição política sem abandonar nosso compromisso com o Senhor Jesus? Como cumprir nosso dever cívico mantendo nossa identidade celestial?
Talvez o texto que melhor resume esta polêmica é a fala de Jesus em Mateus 22.15-22:
Então os fariseus saíram e começaram a planejar um meio de enredá-lo em suas próprias palavras. Enviaram-lhe seus discípulos junto com os herodianos, que lhe disseram: “Mestre, sabemos que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. Tu não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens. Dize-nos, pois: Qual é a tua opinião? É certo pagar imposto a César ou não?” Mas Jesus, percebendo a má intenção deles, perguntou: “Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à prova? Mostrem-me a moeda usada para pagar o imposto”. Eles lhe mostraram um denário, e ele lhes perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?” “De César”, responderam eles. E ele lhes disse: “Então, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Ao ouvirem isso, eles ficaram admirados; e, deixando-o, retiraram-se.
Há muitas verdades interessantes neste texto que podem nos ajudar. A primeira é que fariseus e herodianos se uniram para armar uma cilada para Jesus. Estes dois grupos eram frontalmente opostos politica e religiosamente. Fariseus eram defensores da lei, buscando seguir rigorosamente cada detalhe dela. Um de seus sonhos mais centrais era de auxiliar no retorno do reino de Deus em Israel. Para eles Herodes, com seu governo impiedoso e autoritário, assim como sua conivência com o Império Romano, era uma afronta. Ainda mais escandalosa era a política deste governante, de aproximar o povo judeu das culturas grega e romana. Os herodianos, por sua vez, eram ou judeus ou gentios que haviam se convertido nominalmente, mas com certeza eram aliados de Herodes e também servos e oficiais do seu governo. Com isso representavam em seu estilo de vida e postura político-filosófica exatamente aquilo que os fariseus mais odiavam. Estes dois grupos se evitavam o tempo todo, quando não se hostilizavam abertamente. Como podiam então se unir, e aparentemente por iniciativa dos fariseus?
Temos assistido políticos, partidos e outros agentes formarem alianças que contrariam suas próprias posições declaradas.
Esta cena é muito atual. Temos assistido políticos, partidos e outros agentes formarem alianças que contrariam suas próprias posições declaradas. Diante do altar da governabilidade sacrificam-se ideologias e posições antagônicas. Inimigos políticos mortais se tornam aliados íntimos, com direito a fotos sorridentes e apoio em campanhas. Com certeza estas ações são sempre alicerçadas em benefícios mútuos. O estado de descaso e falta de integridade é tal que governantes falam abertamente de negociar cargos e ministérios, não devido a uma proposta relevante que este partido ou político tenha, mas em troca de apoio político. Nunca as palavras de Maquiavel foram tão atuais: “Um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir”.[1]
A cilada armada contra Jesus era uma obra de arte. Por um lado, o imposto era odiado pelos judeus; por outro, era implementado pelos herodianos. Um apoio ao imposto colocaria Jesus como partidário dos romanos e, portanto, alvo do desprezo do povo; uma palavra contra o imposto e Jesus teria cometido um crime aos olhos de Herodes e especialmente de Roma. Além disso, para evitar qualquer possibilidade dele se esquivar, a pergunta é precedida por um elogio tão verdadeiro em termos eternos quanto falso nos lábios daqueles que perguntaram:
Mestre, sabemos que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. Tu não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens.
A partir desta introdução a pergunta é direta: “É certo pagar o imposto a César ou não?”. Jesus percebe imediatamente o que está ocorrendo, tanto que os acusa de hipócritas; no entanto, aceita envolver-se neste dilema pedindo primeiramente que lhe mostrem a moeda. O denário era uma moeda de prata muito usada por todo o império. Sua inscrição na época era: “Caesar Augustus Tiberius, filho do divino Augustus”, e no verso: “Pontifex Maximus” (ou “Sumo Sacerdote”). É curioso que a moeda, considerada idólatra por conter a imagem do imperador e uma alusão ao seu status divino, foi prontamente encontrada. Uma vez examinada a moeda, Jesus faz sua declaração sobre o dilema: “Então, deem [ou devolvam] a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Uma análise superficial seria: enquanto cidadãos deste mundo, precisamos cumprir com nossos deveres aqui ao mesmo tempo que reservamos a Deus aquilo que só a ele cabe. No entanto, somos lembrados das palavras de Jesus registradas em Mateus: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”.
Podemos então afirmar com segurança que Jesus não está defendendo uma dupla lealdade, ou sequer afirmando que dinheiro não tem importância, ou ainda advogando uma obediência cega a qualquer que seja o governante. Ele está afirmando a primazia da autoridade de Deus e ao mesmo tempo afirmando que vivemos em um mundo caído que nos impõe obrigações, algumas razoáveis e justas e outras não. Com isso, inúmeras vezes nos confrontaremos com situações em que a demanda do governo é injusta, até mesmo opressiva. Jesus não nos pede para apoiarmos um governo assim, nem tampouco para liderarmos uma revolta, mas reconhece que, com frequência, precisamos viver dentro deste contexto. No entanto, é fundamental não confundirmos sobrevivência com nossa lealdade. C. S. Lewis, um de meus autores favoritos, escreveu:
Um homem poderá ter que morrer por seu país, mas nenhuma pessoa deve, em nenhum sentido exclusivo, viver por seu país. Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence da forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa.[2]
O alerta das palavras de Jesus, aguçado pelo trágico evento do ataque ao candidato, deve nos levar a lembrar onde está nossa verdadeira lealdade. Pode ser que, por viver em um mundo caído, eu tenha de sofrer por viver neste país, mas minha vida não se limita a esse contexto. Pode ser que meus recursos sejam roubados, talvez até com o apoio das autoridades, mas meu verdadeiro tesouro não está nesta terra. Pelo contrário, minha oração por mim e por você é que não nos entreguemos por inteiro a nenhum movimento político desta terra. Teremos, sim, de nos alinhar, de votar, e talvez até tenhamos momentos que Francis Schaeffer chamava de cobeligerância, ou “combater ao lado de”. Nestes momentos podemos participar de uma causa justa em nome de Cristo, mas preservando nossa identidade nele. Não podemos nos entregar sem reservas a qualquer homem, partido ou ideologia, pois, ao fazê-lo, estaríamos dando a César o que é de Deus.
- Nicolau Maquiavel, O Príncipe (São Paulo: Nova Cultural, 1997), p. 85.
- C. S. Lewis, O Peso da Glória (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017) p. 57.
https://www.chamada.com.br/mensagens/lealdade_e_politica.html