A necessidade existencial de mudança na meia-idade

A necessidade existencial de mudança na meia-idade 

 

Carlo Strenger, Arie Ruttenberg

 29 de Fevereiro de 2008

Com o crescimento da expectativa de vida e o fim do emprego para toda a vida, muita gente terá de fazer grandes mudanças durante a meia-idade, embarcando numa segunda vida e, até, numa segunda carreira. Para tanto, é preciso superar dois mitos.

 

O primeiro é que a meia-idade é o início do declínio. Nessa fase da vida surgem problemas, sim — a saúde ou o bolso é motivo de preocupação, por exemplo —, mas a força vital do homem não se esgota aos 65 anos. Tampouco desaparecem as possibilidades. O fato é que, ao chegar à meia-idade, a maioria ganhou uma liberdade que só o autoconhecimento pode dar — e conta com oportunidades inéditas de crescimento pessoal. 

 

Só que a transição na meia-idade deve ser fundada no realismo, e não movida pelo segundo mito, o da meia-idade como momento de transformações mágicas. Ao contrário do que dizem livros e gurus da auto-ajuda, esse tipo de transformação não existe. Uma pessoa de 50 anos de idade com pouca formação musical, por exemplo, não vai virar de uma hora para outra um pianista de fama internacional. A inevitável frustração causada por esse mito pode ser debilitante. Para ter sucesso na transição, o executivo deve estar aberto ao leque de possibilidades para as quais sua experiência o qualifica, mas ser realista em relação ao que é possível atingir. 

 

Para a empresa, a transição da meia-idade pode trazer tanto desafios (um executivo aparentemente cotado para assumir o comando pode deixar a casa) como oportunidades (outros executivos de meia-idade, com perspectivas e experiência distintas, podem bater à porta). Cabe à organização ajudar executivos dessa faixa etária a enfrentar a difícil fase. Aqui, a solução é não só promover um ou outro workshop, mas também oferecer constante orientação e oportunidade para desenvolvimento pessoal e profissional

 

Mãos à obra! A meia-idade é a melhor hora para deixar seu verdadeiro eu aflorar.

 

Numa tese publicada em 1965, Elliott Jaques — psicanalista e consultor organizacional canadense então com 48 anos e relativamente desconhecido — cunhou o termo “crise da meia-idade”. Jaques sustentava que nesse período o homem fica frente a frente com suas limitações, suas possibilidades restritas e sua mortalidade. Mas Jaques, tanto na meia-idade como depois dela, não parecia viver com um senso de limitações. Nos 38 anos transcorridos entre a publicação daquela tese e sua morte — em 2003, aos 86 anos —, Jaques escreveu 12 livros; deu consultoria ao Exército americano, à Igreja Anglicana e a uma grande variedade de empresas; casou com Kathryn Cason, sua mulher e colaboradora por mais de 30 anos; e, ao lado de Cason, fundou uma consultoria dedicada à disseminação de suas idéias.

 

Elliott Jaques, diria o leitor, teve duas vidas. No final da primeira, na altura dos 45 anos de idade, já tinha dois doutorados, um em medicina e outro em psicologia. Concluíra o treinamento psicanalítico e ganhara uma bela experiência na consultoria a organizações e na psicanálise. Em sua segunda vida, Jaques tornou-se um pensador realmente independente. Abriu muito o leque de organizações com as quais trabalhava e formulou os conceitos e teorias que fariam sua fama. Teve algumas de suas idéias mais originais em fins da década de 1990, quando saía da casa dos 70 e entrava na dos 80.

 

A reação das pessoas à vida de Jaques tende a ser de estupefação: “Como alguém pode se manter produtivo por tanto tempo?”. Neste artigo, sustentamos que um caso como o de Elliott Jaques não devia ser considerado atípico. O conceito de idade das pessoas está terrivelmente desvinculado da realidade. Hoje, a expectativa de vida no mundo ocidental é de cerca de 80 anos e segue subindo. Isso significa que aos 53 anos — idade média de um indivíduo da geração do pós-guerra (nascidos entre 1946 e 1964) — o cidadão típico dessa geração viverá mais 30 anos. Pensemos um momento sobre esse fato: já que poucos profissionais ingressam na força de trabalho antes de terminar os estudos — em geral, na casa dos 20 —, o indivíduo médio da geração do pós-guerra tem tantos anos de produtividade à sua frente quanto os já vividos.

 

Com o aumento da expectativa de vida, a mudança na meia-idade passará a ser uma necessidade existencial para muitos executivos. Certas mudanças terão motivação interna. Um profissional pode sentir que o trabalho já não traz satisfação e sonhar com novos desafios, por exemplo. Talvez decida que é hora de buscar novas avenidas. Outras mudanças na meia-idade serão deflagradas por eventos externos: um presidente pode se ver diante de um conflito sem saída com o conselho; um executivo talvez tema ser demitido; um gerente pode ter sido preterido na hora de uma promoção e considerar mínimas suas chances de um dia subir ao patamar seguinte.

 

Pouco importa se o indivíduo sai de iniciativa própria ou se é expulso — alguma mudança na meia-idade é inevitável. Mas, apesar da necessidade e da freqüência dessa mudança, a meia-idade (grosso modo, dos 43 aos 62 anos) continua a ser um período muito difícil — e para o qual as pessoas estão, em geral, despreparadíssimas.

 

Dois mitos contrastantes permeiam os temores de muita gente sobre a meia-idade, impedindo uma mudança triunfal nessa fase. O primeiro, o mito da meia-idade como início do declínio, tem raízes em noções historicamente ultrapassadas. Segundo ele, o homem encerra a vida produtiva e se aposenta aos 65 anos. Só que 65 não é um número mágico. Foi estipulado como idade da aposentadoria na Alemanha em 1916. Vinte e sete anos antes, o chanceler Otto von Bismarck determinara que aos 70 anos o cidadão passaria a receber uma pensão. Indagado se o Estado tinha condições de ser tão generoso, Bismarck respondeu que quase ninguém chegaria àquela idade. Era verdade. Uma fonte coloca a expectativa de vida na Alemanha de então em 49 anos de idade.

 

O segundo mito é a noção da meia-idade como transformação mágica. Nascido nas últimas décadas, esse mito foi alimentado por um sem-fim de livros de auto-ajuda e reportagens em revistas — e pelo clima cultural em geral. O mito tenta vender a ilusão de que a pessoa com suficiente visão e força de vontade pode virar aquilo que quiser. Paradoxalmente, em vez de facilitar a mudança profissional na meia-idade, isso torna a perspectiva mais assustadora. Ao ouvir casos de médicos que despertam um dia convencidos de que querem virar cozinheiros, de donas-de-casa que vislumbram subitamente o império empresarial que irão erguer e de advogados que um dia traçam um plano claríssimo para inaugurar uma empresa de alta tecnologia, uma pessoa de carne e osso inevitavelmente se sentirá inadequada. Tem receios, dúvidas e, na melhor das hipóteses, idéias vagas — e o melhor, portanto, seria ficar com aquilo que já conhece.

 

Nossa tese de que a crença em qualquer mito desses inibe a mudança triunfal na meia-idade é fundada em décadas de trabalho com empresários e executivos em muitas arenas, em nossos estudos qualitativos e quantitativos do grupo com mais de 50 anos e nas teorias mais importantes da personalidade, tanto na tradição humanística como na psicanalítica. Nas páginas seguintes iremos explorar esses mitos em mais detalhe e mostrar como levam a uma abordagem disfuncional à meia-idade. O que descobrimos é que o executivo que enxerga além dos mitos pode empreender uma bela mudança na vida e na carreira. O segredo é estar aberto ao leque de possibilidades para as quais sua experiência o qualificou, mas ser realista em relação ao que é possível atingir. Por último, veremos como empresas arrojadas estão ajudando seus executivos nessa transição para uma segunda vida.

 

 Fim do mito do declínio na meia-idade

 

A idéia de que a meia-idade marca o início do declínio e a de que aceitar limitações crescentes é a única maneira madura de encarar o envelhecimento ainda são tidas pela maioria como bom senso. Só que o bom senso pode estar sendo superestimado. A meia-idade é fascinante por ser um momento no qual a pessoa tem a oportunidade de reexaminar até suas noções mais básicas.

 

Não nos entendam mal: de jeito nenhum queremos subestimar os problemas objetivos surgidos com a meia-idade. Uma dúvida inevitável é saber como aqueles que envelhecem vão manter o padrão de vida ao qual a maioria se habituou sem um emprego em período integral numa empresa. A meia-idade traz, também, mais limitações físicas. A saúde vira uma constante preocupação. É como nos disse um médico: “Uma pessoa com 50 anos que não sente alguma dor provavelmente está morta!”. Particularmente nos Estados Unidos, onde não há cobertura universal na saúde, uma doença séria pode levar à ruína financeira (veja o quadro “O risco de não administrar a meia-idade”). Somado a isso o fato de que o clima cultural torna cada vez mais difícil para alguém na casa dos 50 encontrar trabalho e não surpreende a enorme ansiedade vivida por muita gente na meia-idade.

 

O que queremos dizer é que, enquanto esses problemas viraram o foco de discussões sem fim, as vantagens conquistadas por muitos na meia-idade mal são mencionadas. Ao chegar à meia-idade, a maioria dos executivos já enfrentou crises arrastadas que, em seu momento, pareciam insuperáveis; por meio delas, descobriu do que é capaz. Um recurso que tende a se fortalecer com a idade é a capacidade de colocar novos problemas em perspectiva, algo que ajuda o executivo a lidar com a questão em pauta com muito mais calma e confiança em si próprio. Além disso, a maioria dos executivos chega à meia-idade com pelo menos duas décadas de experiência profissional. Já viveu muitas coisas — e aprendeu muito com essas situações, não só sobre o trabalho, mas sobre si. A maioria descobriu que sente enorme prazer em motivar os outros, por exemplo. Ou descobriu o contrário: gosta mesmo é de agir sozinha e considera esgotante o trabalho com outras pessoas.

 

Nossa tese é que, para um número cada vez maior de gente, a meia-idade pode ser um período de oportunidades inéditas de crescimento interior. Na melhor das hipóteses, pode ser o momento no qual a motivação do indivíduo, segundo a definição do psicólogo Abraham Maslow, deixa de ser regida por deficiências e passa a ser fundada no crescimento. Na deficiência, a motivação é nutrida pela carência. Quem não tem o que comer é consumido pela necessidade de buscar alimento. Quem não tem auto-estima é impelido a provar seu valor. Já a motivação do crescimento não é alimentada pela ausência de algo, mas pela necessidade do homem de atingir seu pleno potencial. Esse impulso pode levar o indivíduo a tentar ouvir a si mesmo com o intuito de descobrir quem é e o que deseja.

 

É por isso tudo que, a nosso ver, o indivíduo tem mais liberdade na meia-idade do que em qualquer outro momento da vida. Não esperamos que essa idéia seja aceita sem resistência — resistência cuja fonte mais fértil é a crença generalizada de que liberdade é ausência de limitações e existência de possibilidades quase ilimitadas. À luz dessa definição, a meia-idade não soa nada animadora.

 

Só que a noção de que nossas possibilidades diminuem com a idade é fundada numa falsa premissa. Quem é jovem não tem possibilidades infinitas. É uma ilusão — ilusão nascida do conhecimento limitado que temos de nós mesmos e do mundo quando jovens. Na juventude, tomamos decisões sem saber muito bem qual é, realmente, nossa capacidade; afinal, uma pessoa com 20 anos, ou menos ainda, pouco sabe sobre seus pontos fortes, sobre aquilo que lhe dá prazer. Muitas carreiras seguem um processo de tentativa e erro regido parcialmente por circunstâncias externas (fui contratado pela empresa A, não pela B) e pela imagem que fazemos do sucesso (“Quero ser um executivo em Wall Street!”). A ilusão da liberdade do jovem é fundada, ainda, numa idealização retroativa. Esquecemos a pressão vivida lá atrás: a necessidade de entrar numa boa universidade, de tirar notas altas, de conseguir um primeiro emprego espetacular, de chegar a essa ou àquela posição antes dos 30, e por aí vai. E, em meio a isso tudo, era preciso definir nossa identidade, cultivar nossa capacidade, estabelecer nossa auto-estima

 

Para muitos, isso tudo perdeu o caráter urgente quando chega a meia-idade. A pessoa deixou de ser consumida pelo temor de não ser boa em nada, ou pela necessidade de provar que é boa em tudo — e ganhou uma liberdade que só o autoconhecimento pode dar. Além disso, já não tem tanta pressa. A maioria dos executivos que consideram uma mudança na carreira não precisa agir imediatamente. É gente com tempo para escutar a si mesma, para identificar suas possibilidades na vida, para criar com carinho uma nova vida. Até chegar a um lugar satisfatório, essa jornada pode ter idas e vindas.

 

Vejamos o caso de Judith, uma israelense de 50 e poucos anos. Sob muitos aspectos, Judith se saíra bem na vida: era sócia de uma das maiores firmas internacionais de auditoria; tinha uma bela casa; o caçula dos três filhos estava prestes a concluir o curso numa faculdade renomada. Mas havia um sério problema: no último ano, Judith vinha achando cada vez mais difícil acordar de manhã para ir ao trabalho. Sofria só de pensar na agenda do dia. Cada vez que o telefone tocava, era invadida pela tentação de pedir à secretária que dissesse à pessoa do outro lado da linha que ela, Judith, estava em reunião. Não havia nada no trabalho que despertasse seu ânimo: nem reuniões com clientes, nem interações de estratégia com os colegas, nem videoconferências com filiais da firma no exterior.

 

 Judith estava vivendo uma crise da meia-idade. Embora sentisse a necessidade de mudar algo na vida profissional, simplesmente não sabia por onde começar. Até ali, sua vida seguira linhas bem definidas. Judith casara cedo; ao virar contadora, fizera uma escolha facilmente aceitável pela família; e, na execução de seu plano de vida, não enfrentara nenhum grande distúrbio. A família incutira em Judith uma forte ética de trabalho — tempo não ocupado com algo era tempo perdido. “Não admira que eu tenha virado contadora”, brincou.

 

O primeiro passo na transição de meia-idade de Judith foi surpreendente e teve pouco a ver com uma mudança profissional. Para Judith, uma judia praticante, a religião sempre fora importante. A certa altura, porém, começara a sentir que sua prática do judaísmo virara uma rotina inerte. “Por muito tempo achei que era inútil sacudir o barco”, disse. “Tinha filhos para criar e não havia uma alternativa àquilo que era ditado por nossa congregação. Uma vida secular nunca me atraiu.”

 

Incentivada por um consultor pessoal, Judith começou a se dedicar à leitura de várias correntes do judaísmo. Embora muito inteligente, jamais tinha considerado a sério a possibilidade de pensar ativamente sobre a religião. Poucos meses depois de ler uma série de tratados sobre o tema, começou a exibir um brilho no olhar. “Estão abrindo minha cabeça! Não posso acreditar que [até hoje] tenha ignorado isso!” Judith começou a organizar grupos de leitura para gente com interesses afins; seu marido virou um parceiro ativo na busca de novas maneiras de viver o judaísmo.

 

A expansão religiosa de Judith não virou uma segunda carreira, mas serviu de catalisadora para novas mudanças. Judith passou a falar mais com os outros. Percebeu que a visão que tinha de si — uma criatura do hábito, incapaz de fazer qualquer coisa nova — era muito limitadora.

 

No trabalho, uma de suas responsabilidades era assessorar empresas em fusões e aquisições. Tinha um belo know-how na área, mas vinha achando o trabalho repetitivo, enfadonho. Só que a idéia de passar para o lado de quem investia — para “território inimigo”, em suas palavras — era algo que lhe assustava muito. Foi com apreensão, portanto, que ouviu um colega sugerir que fosse conversar com um fundo de capital de risco. “Estou velha demais”, disse Judith. “Nenhum fundo [desses] teria interesse em mim.”

 

Com efeito, o primeiro fundo que procurou não tinha uma vaga boa para Judith — mas o pessoal lá reagiu muito bem a uma possível mudança da contadora para a área e até se ofereceu para ajudá-la a encontrar algo. Cerca de seis meses depois Judith recebia uma oferta para trabalhar num fundo de capital de risco. Aceitou com a condição de que entraria como analista sênior — se ao final do primeiro ano fosse constatada sintonia entre ela e os sócios, a firma lhe ofereceria o posto de sócia.  Como a sintonia foi altíssima, em dois anos Judith havia feito uma triunfal transição de meia-idade.

 

Essa história ilustra um padrão muito comum. Judith aproveitou uma transição de meia-idade não só para dar uma guinada na vida profissional, mas também para se conectar com seus desejos e virar uma mulher mais independente, no comando da própria vida. Para gente como Judith, a meia-idade pode ser um período particularmente valioso. Sua vida pode se enriquecer de forma inimaginável à medida que a pessoa avança naquilo que Carl Jung chamou de individuação: o processo de se tornar seu verdadeiro eu. Assim como Judith, muitos executivos que conseguiram promover mudanças na meia-idade finalmente têm liberdade para perguntar a si mesmos o que querem e no que crêem.

 

 Fim do mito da transformação mágica

 

O que Judith fez particularmente bem foi buscar uma mudança realista. Nem sempre, porém, é o rumo tomado. Um mito contrastante sobre a transição de meia-idade invadiu nossa cultura nos últimos anos — em parte, suspeitamos, em reação à velha crença de que a meia-idade inevitavelmente traz perda de liberdade. Segundo esse mito, querer é poder. O imortal lema da Nike — “Just do it!” — sintetiza bem a mensagem disseminada por inúmeros livros de auto-ajuda, workshops inspiracionais e palestras para gerentes vendidas como “eletrizantes”, “animadoras” e “motivadoras”. Um exame mais detido revela conceitos da filosofia oriental mesclados com lemas totalmente incoerentes. Ainda assim, já vimos executivos sérios — gente tarimbada e inteligente — debruçados sobre um texto em busca de verdades insondáveis que simplesmente não estão ali.

 

Um problema é que o mito da transformação mágica contradiz a ciência. O cérebro humano é composto de bilhões de neurônios conectados entre si por uma miríade de vias, ou pathways. Para alterar um padrão básico de pensar, sentir e agir é preciso que bilhões de novas conexões sejam formadas. Um processo desses deve ser constantemente alimentado por informações experienciais, o que o torna inevitavelmente gradativo. O cérebro é uma estrutura orgânica, não um computador no qual é possível simplesmente instalar um novo programa. Aceitamos esse fato no que diz respeito a habilidades sensomotoras como jogar squash, mas tendemos a esquecê-lo quando o assunto são padrões psicológicos estabelecidos, cuja complexidade não é menor.

 

O mito da transformação mágica pela visão e pela força de vontade tampouco passa no teste da experiência cotidiana. Não existe transformação mágica. Até hoje não encontramos alguém que tivesse acordado um dia com uma visão totalmente formada em sua mente e tivesse seguido uma rota direta para transformá-la em realidade. No caminho da transformação, os seres de carne e osso com quem trabalhamos sentem medo, ficam confusos, fazem tentativas, erram — algo confirmado por coaches sérios com quem travamos contato ao longo dos anos.

 

Em determinado momento, a maioria das pessoas percebe que uma transformação radical não é algo realista — e a decepção que isso traz pode ser debilitante. Vimos centenas de pessoas voltarem de palestras animadoras e de intensos workshops crentes de que sua vida estava prestes a mudar para sempre.

 

Mas o padrão é sempre o mesmo: a mágica persiste por diversos dias, mas, ao fim de umas duas semanas, a grande maioria dos participantes já não entende por que acreditou que as palavras de motivação proferidas iriam transformar sua vida. Na esteira, ficam confusos, sem saber ao certo em que direção gostariam de evoluir — e acabam abandonando a tentativa de mudar. O paradoxo, portanto, é que a própria doutrina que busca estimular a mudança acaba agindo para impedi-la.

 

O mito da transformação mágica se alastrou por alimentar a tendência muito humana a confundir fantasia com realidade. Todo mundo tem fantasias sobre aquilo que poderia ter sido em outra vida: ator, cantor, escritor, magnata, político. Embora a maioria nunca fale sobre isso, essas fantasias podem ter forte influência sobre nossa psicologia, como tão bem mostrou Freud. É comum nos sentirmos como uma borboleta confinada ao casulo da vida real, à espera da libertação. Essa fantasia é expressa em contos de fadas e no cinema — e não traz problemas desde que continue claramente entendida como ilusória. Já quando o indivíduo passa a acreditar que a fantasia é uma realidade potencial, surgem os problemas.

 

Para entender a questão é preciso reconhecer a diferença entre sonho e fantasia. Segundo definição do psicanalista britânico Donald W. Winnicott, sonhar é usar a imaginação para criar cenários possíveis nos quais nosso potencial possa ser atingido. Para ser produtivo, no entanto, o sonho deve estar ligado a nosso potencial. Caso contrário, não passa de vã fantasia. Daí ser crucial a capacidade de distinguir o sonho da fantasia: sem sonhar, dificilmente iremos fazer qualquer mudança — mas se perder em fantasias é não só um desperdício de energia como pode virar um obstáculo à verdadeira mudança.

 

Vejamos o seguinte caso. Albert era vice-presidente sênior de marketing de um grande banco e, havia pouco, achara um jeito novo — e muito eficaz — de promover o novo instrumento financeiro da instituição. Corria solto o boato de que seria o próximo presidente do banco. De uma hora para outra, o executivo começou a sentir dores no peito. Depois de uma série de exames, o médico suspeitou que o problema tivesse origem psicossomática e sugeriu que Albert procurasse a ajuda de um dos autores deste artigo, Carlo Strenger.

 

Albert aceitou que os sintomas pudessem ser, em parte,psicológicos, bem como ligados à sua idade (estava próximo dos 50). Só não entendia por que estaria tendo problemas naquele momento, quando sua carreira andava tão bem. Se seu organismo estivesse avisando que a vida na empresa já não era para ele, o que deveria fazer? Só de pensar em deixar o banco Albert sentia calafrios. “Trabalhei a vida toda em bancos! Seria uma loucura jogar isso tudo fora agora”, desabafou.

 

Seus temores eram naturais. Nunca é fácil para uma pessoa deixar um campo conhecido — e que lhe garantiu posição, renda, segurança. Depois de um período de intensa ansiedade sobre o futuro, seguiu-se um par de meses em que Albert falou sem parar em virar roteirista e diretor de cinema. Incitado por livros de auto-ajuda que lhe diziam que era possível ser o que quisesse, fez planos para entrar no mundo altamente competitivo do cinema. Chegou a passar um fim de semana tentando escrever um roteiro. Mas, depois de ruminar bastante o assunto nas sessões de aconselhamento, Albert acabou concluindo que a meta, para ele, não era realista. Embora sempre tivesse adorado filmes e possuísse um conhecimento incrível da história do cinema, quando pressionado teve de admitir que sua experiência mais próxima na direção tinha sido filmar os filhos: “Quando quis transformar os vídeos de umas férias em algo mais, pedi a um estudante de cinema que editasse o material; nem passou por minha cabeça fazer aquilo eu mesmo”, disse. Albert estava percebendo que virar diretor ou roteirista era mais fantasia do que sonho.

 

Naquele ponto, Albert ficou visivelmente deprimido. Como seria de esperar, o mito da transformação mágica teve efeito paralisante sobre ele. Albert sentia que não tinha o ímpeto nem a força dos indivíduos descritos na literatura inspiracional, de auto-ajuda. “Deve ser gente realmente especial, não como eu. É melhor ficar no banco até a hora de me aposentar”, disse.

 

Esse era o estágio no qual Albert precisava de subsídios do mundo externo para poder cristalizar uma nova visão. O consultor pessoal fez o executivo pensar naquilo que o atraía para o cinema. Primeiro, ele adorava o meio. Segundo, achava que, naquele campo, teria oportunidade de trabalhar com gente diferente. “Não sei se consigo engolir a idéia de seguir cercado de sujeitos de terno por muito mais tempo!”, desabafou. Mas havia motivações mais profundas também. Albert sentira, em momentos cruciais em sua vida adulta, que certos filmes lhe haviam ajudado a entender a situação que enfrentava. Seu intenso interesse nessa arte era movido, em parte, pelo desejo de fazer filmes que pudessem ajudar outros indivíduos da mesma forma.

 

Depois de um duríssimo confronto com a realidade, Albert percebeu que, embora não pudesse ser tudo o que fantasiava, se se dedicasse de verdade ainda poderia ser muito. Adorava motivar os outros; adorava gerar idéias — e nisso, era bom; gostava de bolar estratégias e tinha experiência comprovada nisso. No final, depois de muito networking e de algum aconselhamento, Albert conheceu um grupo de executivos que havia decidido sair de uma grande empresa do setor de comunicação para montar uma operação menor, que tivesse contato mais direto com gente da área criativa. Esse pessoal precisava de capital e ninguém do grupo tinha cacife para chefiar a empresa.

 

Albert tinha o que precisavam. Era bom de estratégia e tinha contatos com fontes de capital. Acima de tudo, gostava do processo de avaliar roteiros, gerar idéias e colocá-las em prática. Levou um tempo para que aceitasse que havia um risco financeiro em se unir àquele grupo. Albert temia se sentir humilhado por dirigir um carro menos luxuoso do que o de outros executivos ou esquiar em lugares menos exclusivos. Mas, devido a uma auto-estima suficientemente estável e graças ao apoio da mulher, conseguiu traçar um plano detalhado para cortar despesas. Para sua surpresa, quando abriu mão da grande sala com vista para a cidade e do carro da empresa, a sensação de perda foi muito menor do que esperava. Anos depois, relatou, sua nova vida não só era mais criativa do que a dos tempos do banco, mas as dores no peito tinham passado completamente.

 

Essa transição foi possível porque Albert conseguiu distinguir o sonho da fantasia. Ninguém acharia que, aos 50 anos de idade, é realista começar a tocar piano com a meta de se tornar um concertista internacional. Também é raríssimo que uma mudança profissional na meia-idade converta um executivo de banco num roteirista de cinema. Para se livrar da ilusão da onipotência é preciso se concentrar no vínculo entre suas habilidades e suas aspirações.
A pessoa pode até não virar um pianista profissional, mas poderia ser gerente de uma orquestra.

 

Administre a mudança profissional

 

Para executivos se aproximando da meia-idade, a boa notícia é que transformações no mercado de trabalho nas últimas décadas fizeram crescer as oportunidades para a mudança na carreira. Hoje há, por exemplo, uma série de profissões e papéis que nem existiam 30 anos atrás. Além disso, grandes empresas tendem a terceirizar mais e mais tarefas e atividades, abrindo oportunidades para que profissionais de áreas distintas vendam seus serviços. Quanto mais ciente o executivo estiver das habilidades que adquiriu ao longo da vida profissional, maior sua capacidade de tirar proveito dessas oportunidades.

 

Naturalmente, conforme indicam os exemplos aqui dados, adquirir uma compreensão das possibilidades é um grande desafio — que muitas vezes requer a ajuda de um consultor pessoal, de um coach ou de um terapeuta com certa noção de desenvolvimento profissional. Adquirir consciência de si mesmo também pode ser um processo lento. Albert levou mais de um ano só para admitir que devia cogitar uma mudança profissional — mesmo com a “ajuda” dos problemas de saúde para indicar que algo ia mal. Com freqüência, como descobriu Judith, o processo levará a pessoa a embarcar num projeto sem ligação com o trabalho, mas de papel catalisador. Talvez seja possível encontrar um projeto desses na comunidade ou em programas de RSE patrocinados pela empresa. Muitos executivos diriam que as exigências do trabalho nesse estágio da vida impedem que dediquem tempo a atividades sem vínculo com o cargo. É forte, contudo, nossa convicção de que uma atividade dessas pode ajudar o executivo a detectar a necessidade de transição; pode, ainda, apontar a direção que tal transição poderia tomar.

 

A transição na meia-idade não é, no entanto, apenas um exercício de gestão pessoal. Empresas e seus investidores precisam se preparar para a possibilidade de que altos executivos aparentemente cotados para assumir o comando (como Albert) possam estar cogitando um rumo bem distinto. Por outro lado, a transição da meia-idade abre à empresa a oportunidade de importar perspectivas e habilidades de gente interessada em adentrar novas áreas, como no caso de Judith. Já que a transição da meia-idade é um problema (e uma oportunidade) que pela primeira vez assume proporções tão grandes para a empresa, ainda não há melhores práticas a adotar. Apesar disso, algumas já tentam enfrentar a situação. A maioria, porém, se limita a despachar gerentes para breves seminários e programas com mensagens simples como “siga em frente”, “busque o potencial inexplorado dentro de si mesmo” ou “fuja aos padrões”.

 

Esse tipo de evento pode ajudar, mas a empresa que queira encarar a sério a gestão da mudança de meia-idade de seus executivos precisa saber que isso levará tempo. Um workshop de três dias pode, no máximo, incitar a pessoa a deflagrar a mudança, mas jamais fará o trabalho pelo indivíduo. Toda empresa deve tomar medidas radicais para ajudar seus executivos a entender que, dada a expectativa atual de vida, todo mundo deixará a empresa um dia para iniciar outra vida. A única dúvida é com que idade a pessoa partirá.

 

Para promover essa mentalidade, as políticas da empresa devem prever essa ajuda nos preparativos para uma segunda vida. A nosso ver, toda pessoa acima da gerência intermediária e com mais de 45 anos deve ter reuniões periódicas com coaches ou consultores que a ajudem a planejar uma segunda carreira. A empresa deveria criar, ainda, um fundo de educação continuada para ajudar executivos a cultivar conhecimentos, habilidades e interesses úteis para seu desenvolvimento pessoal, não só para o desempenho no trabalho atual. Como sugeriram Rosabeth Moss Kanter, Rakesh Khurana e Nitin Nohria, o mundo empresarial precisa colaborar com instituições de ensino superior para desenvolver programas e cursos com essa finalidade.

 

Para a empresa, talvez seja útil estabelecer vínculos com organizações — comerciais ou não — que abram oportunidades para que executivos colaborem em projetos específicos. Naturalmente, esse tipo de investimento tem seu custo — mas o retorno, enquanto o executivo permanece na empresa, não tem preço. Graças a atividades distintas de desenvolvimento, o executivo se tornará um profissional completo, o que, em si, é um ativo competitivo. Mas talvez o mais importante seja que um indivíduo instado a pensar sobre sua vida após sair da empresa pode deixar de equiparar o fim do emprego à morte — crença que pode levar o pânico a invadir a cultura da organização. Se tiver adquirido interesses, bases de conhecimento e habilidades novas, a pessoa terá mais confiança em si mesma e ficará menos paranóica — e a organização será mais produtiva.

 

No caso das empresas, é preciso aprender, ainda, a lidar com o influxo de talentos da geração do pós-guerra. Enquanto muitos executivos na meia-idade vão querer buscar avenidas fora do mundo empresarial, outros buscarão adentrar esse universo. Organizações dispostas a achar soluções criativas para aproveitar o know-how e a experiência de executivos da meia-idade podem ter vantagem competitiva no mercado. Uma grande empresa de serviços financeiros, por exemplo, percebeu que essa geração representava um segmento altamente rentável do mercado. Nela, muita gente acumulara um patrimônio considerável e buscava uma boa gestão para esses recursos. Para atrair esse público, a empresa montou um braço voltado a clientes de meia-idade — em torno de um grupo de executivos também na casa dos 50. Esses profissionais entendiam as necessidades da clientela visada, sabiam que serviços esse público queria  e conseguiram conquistar sua confiança com iniciativas de marketing.

 

 

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A geração do pós-guerra está envelhecendo, mas seu trabalho está longe de concluído. Muita gente pode antever e desfrutar uma segunda vida, se não uma segunda carreira. A tarefa em mãos não é, contudo, tão fácil como promete a cultura da auto-ajuda, com seu “querer é poder”. A verdadeira transformação na meia-idade não reside em nós, esperando para sair do casulo como a borboleta. A auto-realização é uma obra de arte. Para chegar lá é preciso esforço, energia, habilidade. Por sorte, o ímpeto vital não se extingue aos 65 anos de idade. Aliás, não há fase mais propícia ao crescimento e ao desenvolvimento interior do que a meia-idade, quando muitos aprendem a ouvir seu eu mais íntimo — o primeiro, e indispensável, passo na jornada da realização pessoal.

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Carlo Strenger (strenger@freud.tau.ac.il) é psicanalista, filósofo e professor associado de psicologia na Universidade de Tel Aviv, em Israel. Arie Ruttenberg (arie@club50.co.il) é fundador da Club 50, empresa que desenvolve e presta serviços a indivíduos na meia-idade, além de fundador e ex-presidente da agência de publicidade McCann Erickson Israel. Em 2005, os autores fundaram, juntos, o Life-Take2 Institute, organização dedicada à pesquisa e à consultoria em mudanças na meia-idade. 

Imagem:  1 https://www.youtube.com/watch?v=rWTLJBEpRuA

http://hbrbr.uol.com.br/a-necessidade-existencial-de-mudanca-na-meia-idade/-