A mais nobre das cores

 


A mais nobre das cores

Púrpura... Quem saberá que cor é, e qual a sua origem? Símbolo de nobreza e de poder, esteve presente em grandes momentos históricos.

Guy de Ridder.JPGGuy de Ridder

Hoje, a palavra púrpura evoca quase automaticamente o manto escarlate de algum cardeal ou, mais ainda, as grandiosas cenas dos prelados reunidos por ocasião de algum conclave ou consistório. São dois termos tão interligados que "purpurado" acabou se tornando sinônimo de cardeal.

Considerada a "rainha das cores", sua história merece ser bem conhecida pois descortina interessantes panoramas, não só na linha da arte, mas também da psicologia e das ambições humanas.

Privilégio da família imperial

No tempo do Império Romano, a púrpura era considerada preciosíssima. Somente o imperador podia vestir- se inteiramente de púrpura, enquanto que para senadores, ministros e outras altas personalidades, seu uso era regulado segundo a categoria ou importância de cada um. Mas a demanda era grande, de modo que a comercialização de tecidos tingidos dessa cor constituía um dos mais florescentes negócios de então.

Assim, pode-se imaginar a indignação que tomou conta de Roma certo dia, por volta do ano 60 da Era Cristã, quando Nero baixou um decreto prescrevendo que o uso do prestigioso tecido passava a ser privilégio exclusivo da família imperial. Como a época não era de medidas suaves, ficava estabelecida a pena de morte e confisco dos bens para quem a usasse ou simplesmente a comprasse!

Não é difícil supor quanto esse ato do despótico imperador suscitou iradas reações entre os membros do Senado, do Patriciado, das classes dirigentes em geral e, sobretudo... dos mercadores: para os membros das classes elevadas, essa medida arbitrária representava uma humilhação difícil de engolir; para os negociantes, a falência pura e simples.

Tendo falecido Nero, o uso da púrpura foi novamente liberado para quem tivesse condições de adquiri-la.

Quase quatro séculos mais tarde, outro imperador, este já estabelecido em Constantinopla, restringiu novamente seu uso aos membros da imperial família. Os filhos do casal imperial passaram a receber o cognome de Porphyrogénete, que significa "nascido na púrpura". Com o tempo, porém, esse decreto deixou de ser aplicado, pois o comércio dos tecidos tingidos com a preciosa cor continuou próspero até a queda de Bizâncio, em 1453.

Mercadoria de alto luxo, desde remota antiguidade

Já bem antes do Império Romano, a púrpura fazia parte das mercadorias de alto luxo, e seu uso era símbolo de realeza e

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No Império Romano, somente o monarca podia revestir-se inteiramente de púrpura, en-
quanto que para senadores, ministros e outras personalidades, seu  uso  era  regulado
segundo a categoria ou importância de cada um (O imperador Justiniano acompanhado
de sua corte, mosaico da Igreja de São Vital, Ravena, Itália)         Bridgman Art Library
Getty Images

de poder. Em várias passagens da Sagrada Escritura, ela é apresentada no mesmo nível das pedras e dos metais preciosos.

O caso mais característico é o narrado no livro do Êxodo. Cerca de 1250 anos antes do nascimento de Cristo, poucos meses após tirar do Egito o povo hebreu, Deus transmitiu a Moisés a ordem de construir-Lhe "um santuário". Os capítulos 25 e seguintes transcrevem as meticulosas instruções do Senhor para a confecção de cada peça. Neles se pode ver a "púrpura violeta e escarlate" mencionada a todo o momento, junto com ouro, prata e pedras preciosas.

Quando o general assírio Holofernes sitiou Betúlia com um colossal exército, Judite saiu da cidade e foi encontrá-lo em sua tenda, onde o encontrou sob "um baldaquino de púrpura, bordado de ouro, com esmeraldas e pedras preciosas" (Jt 10, 19). E o Livro de Ester descreve a manifestação de riqueza e esplendor do rei Assuero: "Cortinas brancas de algodão e de púrpura violeta; leitos de ouro e prata sobre um pavimento de pórfiro" (Est 1, 6).

Não estranha, pois, que na Antiguidade ela tenha sido qualificada de real, de imperial e até mesmo de divina. Além de ser a mais bela das cores, era também a mais estável. Mireille Marlier, grande especialista na matéria, relata a propósito o seguinte fato: "Quando Alexandre o Grande apoderou-se de Susa, a capital de Dario, em 331 a.C., encontrou ali uma fortuna de vestimentas tingidas de púrpura. Conservadas havia 180 anos, suas cores permaneciam tão belas como no primeiro dia".

Pagava-se um preço elevado por essa mercadoria tão preciosa. E não sem motivo: eram necessários nada menos de 8 a 10 milhões de moluscos para produzir um quilo de colorante, o qual dava para tingir apenas 80 quilos de lã. E o processo de sua fabricação era complicado, delicado e demorado.

Afinal, qual é a cor da púrpura?

Nas várias obras dedicadas ao tema, fala-se de púrpura violeta, escarlate, azul... Afinal, qual é sua verdadeira cor? A "rainha das cores" é como a "rainha das flores", que é não apenas rósea, mas também vermelha, branca, amarela e de várias outras tonalidades. Mireille Marlier escreve: "No sentido estrito da palavra, a púrpura define um colorido violeta que varia do vermelho ao azul".

A matéria-prima usada na sua fabricação é extraída da glândula hipobranquial de uma espécie de moluscos marinhos muito comuns, na época, na margem oriental do Mediterrâneo. "Uma vez exposta à luz e ao ar, essa glândula transparente tornase amarela, em seguida passa para um verde que se transforma em azul e termina em vermelho-violeta ou em outras tonalidades" - esclarece Inge Boesken Kanold, pintora de renome internacional e uma das maiores autoridades em cores raras, antigas e desaparecidas.

Cabia, pois, ao artífice determinar a cor desejada, expondo a matériaprima à ação da luz e do ar por um tempo maior ou menor, conforme a encomenda do cliente. A "púrpura autêntica" podia, portanto, ser de cores diferentes, mas o colorido que a define no sentido estrito do termo é de uma tonalidade entre ametista e vermelho-escuro.

Uma cor perdida para sempre?

Depois de mais de dois milênios de glória, a púrpura foi aos poucos perdendo sua importância enquanto colorante de tecidos. A expansão do Cristianismo, com o conseqüente nascimento da arte sacra cristã, abriu-lhe um campo de aplicação menos amplo, é verdade, mas notavelmente mais elevado: o das iluminuras, dos pergaminhos e das imagens sacras. Edições da Bíblia, livros litúrgicos, manuais religiosos, etc. foram enriquecidas por artísticos desenhos e por letras de ouro e prata escritas sobre fundo purpúreo. Em breve, também as autoridades temporais passaram a usá-la para escrever os contratos de transcendental importância.

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Vestígio da púrpura original é o manto escarlate dos
cardeais da Santa Igreja (São Jerônimo, por Domini-
kos Theotokópulos, El Greco, Metropolitan Museum
of Art, Nova York)           Gustavo Kralj

A partir do século XI, porém, a púrpura foi sendo cada vez menos utilizada. Demasiadamente cara e fonte de manifestações de luxo em nada elogiáveis, seu uso sofreu censuras por parte de destacadas figuras do clero, entre as quais São Bernardo de Claraval, e acabou por ser, na prática, interditada na arte sacra.

A tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, deu-lhe o golpe de misericórdia.

Simbolismo da púrpura cardinalícia

Despontou então o azul como estrela de primeira grandeza no mundo das artes. Da púrpura restaram saudades em pintores, em apreciadores de obras artísticas, em filósofos e em pessoas simplesmente ávidas de beleza, almas privilegiadas que, ao encontrar algo muito belo, admiram, mas logo em seguida exclamam: "Deve haver algo mais belo ainda!"

Na memória do homem comum restaram alguns vestígios. O mais notável deles é justamente a "púrpura cardinalícia", ou seja, o manto escarlate dos cardeais da Santa Igreja.

Muito mais do que sua utilidade ornamental, esse manto tem até hoje um caráter altamente simbólico. O Papa João Paulo II assim o definiu, dirigindose aos novos cardeais, em fevereiro de 2001: "A própria cor púrpura de vossas vestes recorda- vos essa urgência. Essa cor não é o símbolo do amor apaixonado a Cristo? Nesse vermelho rutilante não está o fogo ardente do amor à Igreja que deve igualmente alimentar em vós a disponibilidade, se necessário, até o supremo testemunho do sangue, que está indicado? ‘Usque ad effusionem sanguinis', afirma o antigo adágio".

(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2006, n. 55, p. 32 à 34)

 http://www.acnsf.org.br/article/6869/A-mais-nobre-das-cores.html

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