A encruzilhada geopolítica do Brasil

Opinião       

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O PÚBLICO pergunta a diversas personalidades brasileiras para onde vai o Brasil. Hoje, o tema é a geopolítica.

O Brasil quer apenas ser Brasil. Tudo parece indicar que o Brasil atual segue uma trajetória muito própria, por meio da qual o país não quer chegar necessariamente a nenhum destino privilegiado que não seja aquele do reconhecimento de sua autonomia.

Premonitoriamente, quem sabe, tivesse razão o francês Pierre Rondière, quando escreveu, há precisos cinquenta anos, um livro intitulado Delirante Brasil?... de Copacabana à Amazônia, afirmando, logo de saída, que o Brasil é difícil de pensar. Identifico-me profundamente com o título e com a afirmação. Em relação ao título, desconfio que o delírio dos brasileiros seja a sua capacidade de fabular, sonhar, imaginar e, por isso mesmo, de se reinventar todo o tempo, extraindo lições de sua movimentada experiência histórica. Quanto à dificuldade de pensar o Brasil, desconfio que haja explicações razoáveis antecedentes ao pensamento. Elas dizem respeito aos sentimentos e às emoções que fazem do pensamento algo maior e melhor. Daí a dificuldade de pensar o Brasil usando, por assim dizer, tão-somente o pensamento. Nesse sentido, Rondière tinha apenas razão, porque não conhecia a emoção de saber-se brasileiro.

Pensar com emoção é pensar em grande, é pensar com gosto. Gosto muito dos títulos que os franceses dão aos seus livros – como se nota –, por isso menciono outros três: Geopolítica do Caos, Geopolítica do Sentido e Geopolítica das Emoções, respectivamente, de Ignacio Ramonet, Zaki Laïdi e Dominique Moïsi. Logo se nota também que gosto muito de geopolítica e que penso o Brasil por meio dessa relação formada entre o poder e o espaço. Indo direto ao ponto, considero o Brasil atual uma potência emergente que deve ser pensada a partir das emergências, isto é, das novas qualidades que experimenta. Creio que uma breve descrição dessas qualidades, ou pelo menos das mais importantes, nos ajudaria a entender o delírio do país, em suas múltiplas direções, ou seja, a entender para onde ele vai.

O Brasil atual é delirante porque redefine o caos aparente de sua política interna. Em meio às eleições para governadores dos estados e para Presidente da República, além de cargos parlamentares, bem como aos escandalosos casos de corrupção ativa e passiva; em meio às disparidades regionais e às injustiças territoriais que ocorrem nas mais variadas escalas geográficas, os brasileiros se perguntam mais firmemente que rumo seguir. Os brasileiros parecem entender que não necessitam de novos salvadores da pátria. Creio que estejamos diante de uma nova percepção sobre a política e a geopolítica. Não se trata de um movimento apenas político-partidário, com pretensos rompimentos de polarizações de comando no poder executivo, mas de uma rearrumação política ao nível do cotidiano que conta com novas percepções, com um novo modo de olhar para o outro, inclusive de protestar – na rua – contra e com os outros. A geopolítica interna deveria fazer com que as pessoas se reconhecessem como cidadãs plenas dos lugares onde se encontram, fosse numa cidade local, pluriétnica e multilingue, como São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, ou em Copacabana, na metrópole global do Rio de Janeiro. E isto é possível. Para tanto emerge um cidadão mais ativo que exige a ficha limpa dos políticos, que reconhece os ganhos sociais obtidos na última década e que não faz tanta questão de ter um banco central turbinado, voltado à valorização do capital financeiro em detrimento do capital produtivo. Acredito que o Brasil vá nesta primeira direção: a emergência de uma nova ética da política.

O Brasil atual é delirante porque redefine o sentido de sua política externa. A geopolítica do sentido fez emergir um cidadão preocupado com a imagem internacional do Brasil. A metáfora do gigante adormecido que despertou está na moda para se referir a várias facetas do momento presente do país. É como se quiséssemos escrever em itálico o B do acrônimo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). É como se acreditássemos que desde a produção das nossas avançadas tecnologias de extração de petróleo em águas profundas, passando pelo exitoso combate ao tabagismo, até à emergência de uma nova classe média, o país merecesse uma distinção entre os demais. O país insiste, por exemplo, em manter seu papel como líder da geopolítica sul-americana, jogando propriamente com seu peso econômico ou com sua atitude de mediador respeitável. O país também insiste na luta por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como segue em sua contrageopolítica em relação à efetivação da ALCA, a área de livre comércio que os Estados Unidos apreciam tanto quanto as suas bases militares na América Latina. Ao final, o gigante não se pretende um anão diplomático e muito menos geopolítico. Acredito que o Brasil vá nesta segunda direção: a emergência de uma posição internacional mais firme.

O Brasil atual é delirante porque redefine o escopo de suas emoções. O brasileiro se emociona com a visita do Papa Francisco, com a sua derrota humilhante para a seleção alemã no mundial de futebol ou com o acidente letal de um de seus candidatos políticos. O brasileiro caminha para frente imerso num caldeirão emocional. E o respaldo da caminhada é a esperança, marca cristalina da geopolítica das emoções no Brasil. Brasileiro não desiste nunca, diz o populacho. O próprio Moïsi declara em seu livro que a esperança continua a ser a emoção dominante no Brasil. Se a esperança é ameaçada, o brasileiro a reedita, conservando dela o que mais lhe interessa. Mas ela não fala por si só. Emerge com toda força um novo componente nesta marca emocional: a confiança. O brasileiro mostra-se mais confiante em seu potencial criativo, seja nas economias solidárias, nos transportes alternativos ou nas produções artísticas em si. A confiança – essa prima laica da fé – assenta a sociedade brasileira em outras bases que se vêm consolidando desde o início dos anos 2000. Hoje, a confiança da sociedade em si mesma, e, em consequência, no potencial do país, é o valor maior que orienta o rumo nacional. Acredito, finalmente, que o Brasil vá nesta terceira direção: a emergência de uma solidariedade social renovada.

Para onde vai o Brasil? A resposta atravessa uma encruzilhada, essa curiosa situação em que várias direções estão postas à frente e que exigem, em decorrência, uma reflexão mais cautela. Acredito que o Brasil vá em busca de si, atenta e simultaneamente, em múltiplas direções, das quais descrevi três. Penso o Brasil como essa potência emergente – aquela que lida com emergências – dotada de um elevado potencial geopolítico entre o caos, o sentido e a emoção. Todavia, como nenhum país está sozinho no mundo, o Brasil vai aonde e até onde o diálogo com o mundo permitir.

Professor do Programa de Mestrado e doutorado em Geografia da Universidade Federal Fluminense

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