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A santificação sob a perspectiva da bíblia-introdução: Aqui |
I. O EMPENHO ECUMÉNICO DA IGREJA CATÓLICA
O desígnio de Deus e a comunhão
7. « O Senhor dos séculos, porém, prossegue sábia e pacientemente o plano da sua graça a favor de nós pecadores. Começou ultimamente a infundir de modo mais abundante nos cristãos separados entre si a compunção de coração e o desejo de união. Por toda a parte, muitos homens sentiram o impulso desta graça. Também surgiu entre os nossos irmãos separados, por moção da graça do Espírito Santo, um movimento cada vez mais intenso em ordem à restauração da unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é chamado ecuménico. Participam dele os que invocam Deus Trino e confessam a Cristo como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembleias. Cada qual afirma que o grupo onde ouviu o Evangelho é Igreja sua e de Deus. Quase todos, se bem que de modo diverso, aspiram a uma Igreja de Deus una e visível, que seja verdadeiramente universal e enviada ao mundo inteiro, a fim de que o mundo se converta ao Evangelho e assim seja salvo, para glória de Deus ». 6 8. Esta asserção do Decreto Unitatis redintegratio há-de ser lida no contexto de todo o magistério conciliar. O Concílio Vaticano II exprime a decisão da Igreja de assumir a tarefa ecuménica em prol da unidade dos cristãos e de a propor convicta e vigorosamente: « Este sagrado Concílio exorta todos os fiéis a que, reconhecendo os sinais dos tempos, solicitamente participem do trabalho ecuménico ». 7 9. O próprio Jesus, na hora da sua Paixão, pediu « que todos sejam um » (Jo 17, 21). Esta unidade, que o Senhor deu à sua Igreja e na qual Ele quer abraçar a todos, não é um elemento acessório, mas situa-se no centro mesmo da sua obra. Nem se reduz a um atributo secundário da Comunidade dos seus discípulos. Pelo contrário, pertence à própria essência desta Comunidade. Deus quer a Igreja, porque Ele quer a unidade, e na unidade exprime-se toda a profundidade da sua ágape. 10. Na actual situação de divisão entre os cristãos e de procura respeitosa da plena comunhão, os fiéis católicos sentem-se profundamente interpelados pelo Senhor da Igreja. O Concílio Vaticano II reforçou o seu empenho com uma visão eclesiológica clara e aberta a todos os valores eclesiais presentes nos outros cristãos. Os fiéis católicos enfrentam a problemática ecuménica com espírito de fé. 11. Deste modo, a Igreja Católica afirma que, ao longo dos dois mil anos da sua história, foi conservada na unidade com todos os bens que Deus quer dotar a sua Igreja, e isto apesar das crises, por vezes graves, que a abalaram, as faltas de fidelidade de alguns dos seus ministros, e os erros que diariamente investem os seus membros. A Igreja Católica sabe que, graças ao apoio que lhe vem do Espírito Santo, as fraquezas, as mediocridades, os pecados, e às vezes as traições de alguns dos seus filhos, não podem destruir aquilo que Deus nela infundiu tendo em vista o seu desígnio de graça. E até « as portas do inferno nada poderão contra ela » (Mt 16, 18). Contudo, a Igreja Católica não esquece que, no seu seio, muitos eclipsam o desígnio de Deus. Ao evocar a divisão dos cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo não ignora « a culpa dos homens dum e doutro lado », 13 reconhecendo que a responsabilidade não pode ser atribuída somente aos « outros ». Por graça de Deus, porém, não foi destruído o que pertence à estrutura da Igreja de Cristo e nem mesmo aquela comunhão que permanece com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais. 12. A mesma Constituição explicitou amplamente « os elementos de santificação e de verdade » que, de modo distinto, se encontram e actuam para além das fronteiras visíveis da Igreja Católica: « Muitos há, com efeito, que têm e prezam a Sagrada Escritura como norma de fé e de vida, manifestam sincero zelo religioso, crêem de coração em Deus Pai omnipotente e em Cristo, Filho de Deus Salvador, são marcados pelo Baptismo que os une a Cristo e reconhecem e recebem mesmo outros sacramentos nas suas próprias igrejas ou comunidades eclesiásticas. Muitos de entre eles têm mesmo um episcopado, celebram a sagrada Eucaristia e cultivam a devoção para com a Virgem Mãe de Deus. Acrescenta-se a isto a comunhão de orações e outros bens espirituais; mais ainda, existe uma certa união verdadeira no Espírito Santo, o qual neles actua com os dons e graças do seu poder santificador, chegando a fortalecer alguns deles até ao martírio. Deste modo, o Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a prática efectiva em vista de que todos, segundo o modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente num só rebanho sob um só pastor ». 15 13. Este último documento enumera brevemente as implicações doutrinais desta situação. A propósito dos membros dessas Comunidades, declara: « Justificados no Baptismo pela fé, são incorporados a Cristo, e, por isso, com direito se honram com o nome de cristãos e justamente são reconhecidos pelos filhos da Igreja Católica como irmãos no Senhor ». 17 14. Todos estes elementos trazem consigo o apelo à unidade, para nela encontrarem a sua plenitude. Não se trata de aglomerar todas as riquezas dispersas nas Comunidades cristãs, com o fim de se chegar a uma Igreja que Deus teria em vista para o futuro. Segundo a grande Tradição atestada pelos Padres do Oriente e do Ocidente, a Igreja Católica crê que, no acontecimento do Pentecostes, Deus já manifestou a Igreja na sua realidade escatológica, que Ele preparava « desde o tempo de Abel, o justo ». 19 Ela já está presente. Por este motivo, já nos encontramos no fim dos tempos. Os elementos desta Igreja, já presente, existem, incorporados na sua plenitude, na Igreja Católica e, sem tal plenitude, nas outras Comunidades, 20 onde certos aspectos do mistério cristão foram, por vezes, mais eficazmente manifestados. O ecumenismo busca precisamente fazer crescer a comunhão parcial existente entre os cristãos até à plena comunhão na verdade e na caridade.
15. Passando dos princípios, do imperativo da consciência cristã à realização do caminho ecuménico rumo à unidade, o Concílio Vaticano II põe em relevo sobretudo a necessidade da conversão do coração. O anúncio messiânico — « completou-se o tempo e o Reino de Deus está perto » —, e o consequente apelo — « convertei-vos e crede no Evangelho » (Mc 1, 15) —, com os quais Jesus inaugura a sua missão, indicam o elemento essencial que deve caracterizar qualquer novo início: a exigência fundamental da evangelização em cada etapa do caminho salvífico da Igreja. Mas isso aplica-se de modo particular ao processo desencadeado pelo Concílio Vaticano II que incluiu, no âmbito da renovação, a tarefa ecuménica de unir os cristãos divididos entre si: « Não existe verdadeiro ecumenismo sem conversão interior ». 21 16. No magistério conciliar, há um nexo claro entre renovação, conversão e reforma. Afirma: « A Igreja peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma. Assim, se em vista das circunstâncias das coisas e dos tempos houve deficiências (...), tudo seja recta e devidamente restaurado no momento oportuno ». 23 Nenhuma Comunidade cristã pode furtar-se a este apelo. 17. Relativamente aos outros cristãos, os documentos principais da Comissão Fé e Constituição 28 e as declarações de numerosos diálogos bilaterais forneceram já às Comunidades cristãs úteis instrumentos para discernir o que é necessário ao movimento ecuménico e à conversão que este deve suscitar. Tais estudos são importantes sob dois aspectos: mostram os notáveis progressos já alcançados e infundem esperança por constituirem uma base segura para a busca da unidade que se há-de continuar e aprofundar.
18. Retomando uma ideia que o próprio Papa João XXIII tinha expresso na abertura do Concílio, 31 o Decreto sobre o ecumenismo menciona a forma de expor a doutrina, entre os elementos de reforma contínua. 32 Não se trata, neste contexto, de modificar o depósito da fé, de mudar o significado dos dogmas, de banir deles palavras essenciais, de adaptar a verdade aos gostos de uma época, de eliminar certos artigos do Credo com o falso pretexto de que hoje já não se compreendem. A unidade querida por Deus só se pode realizar na adesão comum ao conteúdo integral da fé revelada. Em matéria de fé, a cedência está em contradição com Deus, que é a Verdade. No Corpo de Cristo — Ele que é « Caminho, Verdade e Vida » (Jo 14, 6) —, quem poderia considerar legítima uma reconciliação levada a cabo à custa da verdade? A Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa atribui à dignidade humana a procura da verdade, « sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja », 33 e a adesão às suas exigências. Portanto um « estar juntos » que traísse a verdade, estaria em oposição com a natureza de Deus, que oferece a sua comunhão, e com a exigência de verdade que vive no mais profundo de todo o coração humano. 19. Contudo, a doutrina deve ser apresentada de modo que se torne compreensível àqueles para quem o próprio Deus a destina. Na Epístola encíclica Slavorum apostoli, lembrava como, por tal motivo, Cirilo e Metódio se esforçaram em traduzir as noções da Bíblia e os conceitos da teologia grega num contexto de experiências históricas e de pensamento muito diverso. Queriam que a única palavra de Deus fosse assim « tornada acessível pela adopção dos meios de se exprimir próprios de cada civilização ». 34 Compreenderam que não podiam « impor aos povos aos quais deviam pregar nem sequer a indiscutível superioridade da língua grega e da cultura bizantina, ou os costumes e modos de comportar-se da sociedade mais desenvolvida, em que eles próprios haviam sido educados ». 35 Desta forma, praticavam aquela « perfeita comunhão no amor 1 preserva a Igreja de qualquer forma de particularismo, exclusivismo étnico ou preconceito racial, bem como de qualquer sobrançaria nacionalista ». 36 No mesmo espírito, não hesitei em dizer aos aborígenes da Austrália: « Não deveis ser um povo dividido em duas partes (...). Jesus exorta-vos a acolher as suas palavras e os seus valores na vossa própria cultura ». 37 Já que, por sua própria natureza, o dado de fé se destina à humanidade inteira, isso requer que ele seja traduzido em todas as culturas. De facto, o elemento que decide a comunhão na verdade é o significado da verdade. A expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável. 38 20. Tudo isto é extremamente importante e de significado fundamental para a actividade ecuménica. Vê-se, de modo inequívoco, que o ecumenismo, o movimento a favor da unidade dos cristãos, não é só uma espécie de « apêndice », que se vem juntar à actividade tradicional da Igreja. Pelo contrário, pertence organicamente à sua vida e acção, devendo, por conseguinte, permeá-la no seu todo e ser como que o fruto de uma árvore que cresce sadia e viçosa até alcançar o seu pleno desenvolvimento. Primado da oração 21. « Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o movimento ecuménico, e com razão podem ser chamadas ecumenismo espiritual ». 42 22. Quando os cristãos rezam juntos, a meta da unidade fica mais próxima. A longa história dos cristãos, marcada por múltiplas fragmentações, parece recompor-se tendendo para a Fonte da sua unidade que é Jesus Cristo. Ele « é sempre o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade » (Heb 13, 8). Na comunhão de oração, Cristo está realmente presente; reza « em nós », « connosco » e « por nós ». É Ele que guia a nossa oração no Espírito Consolador, que prometeu e deu à sua Igreja no Cenáculo de Jerusalém, quando a constituiu na sua unidade original. 23. Enfim, a comunhão na oração induz a ver com olhos novos a Igreja e o cristianismo. Com efeito, não se deve esquecer que o Senhor implorou do Pai a unidade dos seus discípulos, para que servisse de testemunho à sua missão e o mundo pudesse acreditar que o Pai O tinha enviado (cf. Jo 17, 21). Pode-se afirmar que o movimento ecuménico teve início, em determinado sentido, da experiência negativa daqueles que, anunciando o único Evangelho, se apelavam cada qual à própria Igreja ou Comunidade eclesial: uma contradição que não podia passar despercebida a quem escutava a mensagem de salvação e que nisso via um obstáculo para acolher o anúncio evangélico. Infelizmente, este grave impedimento não está superado. É verdade! Não estamos ainda em plena comunhão. E todavia, não obstante as nossas divisões, estamos percorrendo o caminho para a plena unidade — aquela unidade que caracterizava a Igreja Apostólica nos seus inícios e que nós procuramos sinceramente: prova-o a nossa oração comum, guiada pela fé. Nela, reunimo-nos no nome de Cristo que é Um. Ele é a nossa unidade. 24. É motivo de alegria constatar como os vários encontros ecuménicos incluem, quase sempre, a oração, antes, culminam nela. A Semana de Oração pela unidade dos cristãos, que se celebra no mês de Janeiro ou, em alguns países, por volta do Pentecostes, tornou-se uma tradição difusa e consolidada. Mas, mesmo fora dela, muitas são as ocasiões, ao longo do ano, que induzem os cristãos a rezarem juntos. Neste contexto, desejo mencionar aquela experiência particular que é o peregrinar do Papa pelas Igrejas, nos diversos continentes e nos vários países daoikoumene contemporânea. Estou ciente de que foi o Concílio Vaticano II que encaminhou o Papa para este especial exercício do seu ministério apostólico. Mais: o Concílio fez deste peregrinar do Papa um preciso dever no cumprimento do papel do Bispo de Roma ao serviço da comunhão. 45 Estas minhas visitas comportaram, quase sempre, um encontro ecuménico e a oração comum de irmãos que procuram a unidade em Cristo e na sua Igreja. Recordo, com particular emoção, a oração em comum com o Primaz da Comunhão Anglicana na Catedral de Cantuária, em 29 de Maio de 1982, quando, naquele templo admirável, reconhecia uma « demonstração eloquente dos nossos longos anos de herança comum e dos tristes anos de separação que se lhes seguiram »; 46 nem posso esquecer os encontros ecuménicos nos Países Escandinavos e Nórdicos (1-10 de Junho de 1989), nas Américas e na África, ou aqueloutro na sede do Conselho Ecuménico das Igrejas (12 de Junho de 1984), o organismo que se propõe como objectivo chamar as Igrejas e as Comunidades eclesiais, que dele fazem parte, « à meta da unidade visível numa só fé e numa única comunidade eucarística, expressa no culto e na vida comum em Cristo ». 47 E como poderei esquecer a minha participação na liturgia eucarística na igreja de S. Jorge, no Patriarcado Ecuménico (30 de Novembro de 1979), e a celebração na Basílica de S. Pedro, durante a visita a Roma do meu venerável Irmão, o Patriarca Dimítrios I (6 de Dezembro de 1987)? Naquela circunstância, junto do altar da Confissão, nós professamos juntos o Símbolo Niceno-Constantinopolitano, conforme o texto original grego. É impossível descrever em poucas palavras os traços específicos que caracterizaram cada um destes encontros de oração. Pelos condicionalismos do passado que, de modo variável, pesavam sobre cada um deles, todos se revestem de uma própria e singular expressividade; todos estão esculpidos na memória da Igreja, que é guiada pelo Espírito Paráclito na procura da unidade de todos os crentes em Cristo. 25. Não foi só o Papa que se fez peregrino. Durante estes anos, numerosos dignos representantes de outras Igrejas e Comunidades eclesiais me visitaram em Roma, e pude rezar com eles em ocasiões públicas e privadas. Aludi já à presença do Patriarca ecuménico Dimítrios I. Gostaria agora de lembrar também aquele encontro de oração que congregou, na Basílica de S. Pedro, para a celebração das Vésperas, a minha pessoa e os Arcebispos luteranos, primazes da Suécia e da Finlândia, por ocasião do VIo centenário da canonização de Santa Brígida (5 de Outubro de 1991). Trata-se só de um exemplo, já que a consciência do dever de orar pela unidade se tornou parte integrante da vida da Igreja. Não existe acontecimento importante, significativo, que não goze da presença recíproca e da oração dos cristãos. É-me impossível enumerar todos estes encontros, embora cada um merecesse ser nomeado. Verdadeiramente o Senhor tomou-nos pela mão e guia-nos. Estes encontros, estas orações escreveram já páginas e páginas do nosso « Livro da unidade », um « Livro » que devemos sempre folhear e reler para dele obter inspiração e esperança. 26. A oração, a comunhão de oração permite-nos voltar à verdade evangélica das palavras: « Um só é o vosso Pai » (Mt 23, 9) — aquele Pai, Abbà, que o próprio Cristo invoca, Ele que é seu Filho unigénito e consubstancial. E o mesmo se diga quanto à afirmação: « Um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos » (Mt 23, 8). A oração « ecuménica » descobre esta dimensão fundamental da fraternidade em Cristo, que morreu para reunir na unidade todos os filhos de Deus que estavam dispersos, morreu para que, tornando-nos « filhos no Filho » (cf. Ef 1, 5), reflectíssemos mais plenamente a insondável realidade da paternidade de Deus e, ao mesmo tempo, a verdade sobre a humanidade própria de cada um e de todos. 27. No entanto, rezar pela unidade não está só reservado a quem vive num contexto de divisão entre os cristãos. Naquele diálogo íntimo e pessoal, que cada um de nós deve estabelecer com o Senhor na oração, a preocupação pela unidade não pode ficar de fora. Pois só assim é que tal preocupação fará parte plenamente da realidade da nossa vida e dos compromissos que assumimos na Igreja. Para confirmar esta exigência, eu quis propor aos fiéis da Igreja Católica um modelo, que me parece exemplar, o de uma freira trapista, Maria Gabriela da Unidade, que proclamei beata no dia 25 de Janeiro de 1983. 50 A Irmã Maria Gabriela, chamada pela sua vocação a estar fora do mundo, dedicou a existência à meditação e à oração, centradas no capítulo 17 do Evangelho de S. João, oferecendo-as pela unidade dos cristãos. Está aqui o fulcro de toda a oração: a oferta total e sem reservas da própria vida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. O exemplo da Irmã Maria Gabriela ensina e faz-nos compreender como não haja tempos, situações ou lugares particulares para rezar pela unidade. A oração de Cristo ao Pai é modelo para todos, sempre e em qualquer lugar.
28. Se a oração é a « alma » da renovação ecuménica e do anseio pela unidade, sobre ela se baseia e dela recebe apoio tudo aquilo que o Concílio define « diálogo » . Essa definição não é certamente independente do pensamento personalista actual. A atitude de « diálogo » situa-se ao nível da natureza da pessoa e da sua dignidade. Do ponto de vista filosófico, uma tal posição une-se à verdade cristã sobre o homem expressa pelo Concílio: ele « é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma »; por isso, o homem não pode « encontrar-se plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo ». 51 O diálogo é passagem obrigatória do caminho a percorrer para a auto-realização do homem, tanto do indivíduo como de cada comunidade humana. Embora do conceito de « diálogo » pareça emergir em primeiro plano o aspecto cognoscitivo (dia-logos), todo o diálogo contém em si uma dimensão global, existencial. Por isso, ele compromete o indivíduo humano na sua totalidade; o diálogo entre as comunidades empenha, de modo particular, a subjectividade de cada uma delas. 29. Por este motivo, também o Decreto conciliar sobre o ecumenismo põe em primeiro plano « todos os esforços para eliminar palavras, juízos e acções que, segundo a equidade e a verdade, não correspondem à condição dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles ». 54 Tal documento enfrenta a questão do ponto de vista da Igreja Católica, referindo-se ao critério que ela deve aplicar em relação aos outros cristãos. Em tudo isso, porém, há uma exigência de reciprocidade. Ater-se a tal critério é compromisso de cada uma das partes que quer dialogar, e é condição prévia para o iniciar. É preciso passar de uma posição de antagonismo e de conflito para um nível onde um e outro se reconheçam reciprocamente como partner. Quando se começa a dialogar, cada uma das partes deve pressupor uma vontade de reconciliação no seu interlocutor, de unidade na verdade. Para realizar tudo isso, devem desaparecer as manifestações de confrontação recíproca. Somente assim o diálogo ajudará a superar a divisão e poderá aproximar da unidade. Estruturas locais de diálogo 31. O empenhamento no diálogo ecuménico, tal como ficou patente desde os tempos do Concílio, longe de ser prerrogativa da Sé Apostólica, incumbe também sobre cada uma das Igrejas locais ou particulares. Especiais comissões para a promoção do espírito e da acção ecuménica foram instituídas pelas Conferências Episcopais e pelos Sínodos das Igrejas Orientais Católicas. Análogas e oportunas estruturas operam ao nível de cada diocese. Tais iniciativas comprovam o envolvimento concreto e geral da Igreja Católica na aplicação das orientações conciliares sobre o ecumenismo: este é um aspecto essencial do movimento ecuménico. 55 O diálogo não só foi iniciado, mas tornou-se uma expressa necessidade, uma das prioridades da Igreja; em consequência, foi aprimorada a « técnica » de dialogar, favorecendo, contemporaneamente, o crescimento do espírito de diálogo. Neste contexto, pretende-se aludir, antes de mais, ao diálogo entre os cristãos das diversas Igrejas ou Comunidades, « estabelecido entre peritos competentes, (...) em que cada qual explica mais profundamente a doutrina da sua Comunidade, e apresenta com clareza as suas características ». 56 No entanto, é útil a cada fiel conhecer o método que permite o diálogo. 32. Como afirma a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, « a verdade deve ser buscada pelo modo que convém à dignidade da pessoa humana e da sua natureza social, isto é, por meio de uma busca livre, com a ajuda do magistério ou ensino, da comunicação e do diálogo, com os quais os homens dão a conhecer uns aos outros a verdade que encontraram ou julgam ter encontrado, a fim de se ajudarem mutuamente na inquirição da verdade; uma vez conhecida esta, deve-se aderir a ela com um firme assentimento pessoal ». 57 Diálogo como exame de consciência 33. Segundo o Concílio, o diálogo ecuménico tem o carácter de uma procura comum da verdade, em particular sobre a Igreja. De facto, a verdade forma as consciências e orienta-as na sua acção a favor da unidade. Ao mesmo tempo, exige que a consciência dos cristãos, irmãos divididos entre si, e as suas obras sejam submetidas à oração de Cristo pela unidade. Há sinergia entre oração e diálogo. Uma oração mais profunda e consciente torna o diálogo mais rico de frutos. Se, por um lado, a oração é a condição para o diálogo, por outro, ela torna-se, de forma cada vez mais matura, o seu fruto. 35. Mais uma vez, o Concílio Vaticano II vem em nossa ajuda. Pode-se afirmar que todo o Decreto sobre o ecumenismo está permeado pelo espírito de conversão. 59 O diálogo ecuménico adquire neste documento um carácter próprio: transforma-se em « diálogo da conversão » e, portanto, segundo a expressão do Papa Paulo VI, em autêntico « diálogo da salvação ». 60 O diálogo não pode actuar-se seguindo uma direcção exclusivamente horizontal, limitando-se ao encontro, à troca de pontos de vista, ou mesmo dos dons próprios de cada Comunidade. Mas tende também e sobretudo a uma dimensão vertical, que o orienta para Aquele que, como Redentor do mundo e Senhor da história, é a nossa reconciliação. A dimensão vertical do diálogo está no comum e recíproco reconhecimento da nossa condição de homens e mulheres que pecaram. É precisamente isto que abrirá nos irmãos, que vivem em Comunidades não plenamente em comunhão entre si, aquele espaço interior, onde Cristo, fonte da unidade da Igreja, pode agir eficazmente, com toda a força do seu Espírito Paráclito. Diálogo para resolver as divergências 36. O diálogo é também instrumento natural para confrontar os diversos pontos de vista e, sobretudo, examinar aquelas divergências que são obstáculo à plena comunhão dos cristãos entre si. O Decreto sobre o ecumenismo detém-se, em primeiro lugar, a descrever as disposições morais com que se hão-de enfrentar os colóquios doutrinais: « No diálogo ecuménico, os teólogos católicos, sempre fiéis à doutrina da Igreja, quando investigarem juntamente com os irmãos separados os divinos mistérios, devem proceder com amor pela verdade, com caridade e humildade ». 61 37. O Decreto Unitatis redintegratio indica também um critério a seguir quando se trata de os católicos apresentarem ou confrontarem as doutrinas: « Lembrem-se que existe uma ordem ou "hierarquia" das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Assim se abre o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e a uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo ». 63 38. No diálogo, embate-se inevitavelmente com o problema das diferentes formulações, mediante as quais se exprime a doutrina nas várias Igrejas e Comunidades eclesiais, facto esse que tem as suas consequências na tarefa ecuménica. 39. Por último, o diálogo põe os interlocutores diante de verdadeiras e precisas divergências que tocam a fé. Estas divergências hão-de ser encaradas, sobretudo, com sincero espírito de caridade fraterna, de respeito das exigências da própria consciência e da consciência do próximo, com profunda humildade e amor à verdade. Nesta matéria, o confronto tem dois pontos de referência essenciais: a Sagrada Escritura e a grande Tradição da Igreja. Serve de ajuda aos católicos o Magistério sempre vivo da Igreja. A colaboração prática 40. As relações entre os cristãos não tendem somente ao recíproco conhecimento, à oração comum e ao diálogo. Prevêem e exigem, desde já, toda a colaboração prática possível aos diversos níveis: pastoral, cultural, social, e ainda no testemunho da mensagem do Evangelho. 66
II. OS FRUTOS DO DIÁLOGO
A fraternidade reencontrada
42. Acontece, por exemplo, que — segundo o espírito mesmo do Sermão da Montanha — os cristãos pertencentes a uma confissão já não consideram os outros cristãos como inimigos ou estranhos, mas vêem neles irmãos e irmãs. Por outro lado, mesmo a expressão irmãos separados, o uso tende hoje a substituí-la por vocábulos mais orientados a ressaltar a profundidade da comunhão — ligada ao carácter baptismal — que o Espírito alimenta, não obstante as rupturas históricas e canónicas. Fala-se dos « outros cristãos », dos « outros baptizados », dos « cristãos das outras Comunidades ». O Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo designa as Comunidades a que pertencem estes cristãos como « Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica ». 69
43. Acontece cada vez mais frequentemente os responsáveis das Comunidades cristãs assumirem posição conjunta, em nome de Cristo, acerca de problemas importantes que dizem respeito à vocação humana, à liberdade, à justiça, à paz, ao futuro do mundo. Agindo assim, eles « comungam » num dos elementos constitutivos da missão cristã: lembrar à sociedade, de modo realista, a vontade de Deus, alertando as autoridades e os cidadãos para que não sigam pelo declive que os conduziria a espezinhar os direitos humanos. É claro, e a experiência demonstra-o, que em algumas circunstâncias a voz comum dos cristãos tem mais impacto que uma voz isolada.
44. Os progressos da conversão ecuménica são significativos também noutro sector, o relacionado com a Palavra de Deus. Penso, antes de mais, num facto tão importante para os vários grupos linguísticos como são as traduções ecuménicas da Bíblia. Depois da promulgação pelo Concílio Vaticano II da Constituição Dei Verbum, a Igreja Católica não podia deixar de acolher com alegria esta realização. 75 Tais traduções, obra de especialistas, oferecem geralmente uma base segura para a oração e a actividade pastoral de todos os discípulos de Cristo. Quem recorda como influíram nas divisões, especialmente no Ocidente, os debates em torno da Escritura, pode compreender quanto seja notável o passo em frente representado por tais traduções comuns. 45. À renovação litúrgica realizada pela Igreja Católica correspondeu, em diversas Comunidades eclesiais, a iniciativa de renovar o seu culto. Algumas delas, baseadas num desejo expresso a nível ecuménico 76, abandonaram o hábito de celebrar a sua liturgia da Ceia apenas em poucas ocasiões e optaram por uma celebração dominical. Por outro lado, comparando o ciclo das leituras litúrgicas de diversas Comunidades cristãs ocidentais, constata-se que convergem no essencial. Sempre a nível ecuménico, 77 deu-se um destaque muito especial à liturgia e aos sinais litúrgicos (imagens, ícones, paramentos, luz, incenso, gestos). Além disso, nos Institutos de Teologia onde se formam os futuros ministros, o estudo da história e do significado da liturgia começa a fazer parte dos programas, como uma necessidade que se está a redescobrir. 46. Neste contexto, é motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência, da Unção dos Doentes a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente, e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e para circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos. As condições para tal acolhimento recíproco estão estabelecidas por normas, cuja observância se impõe em vista da promoção ecuménica. 78 Apreciar os bens presentes nos outros cristãos 47. O diálogo não se articula exclusivamente à volta da doutrina, mas envolve toda a pessoa: é também um diálogo de amor. O Concílio afirmou: « É mister que os católicos reconheçam com alegria e estimem os bens verdadeiramente cristãos, oriundos de um património comum, que se encontram nos irmãos de nós separados. É digno e salutar reconhecer as riquezas de Cristo e as obras de virtude na vida dos outros que dão testemunho de Cristo, às vezes até à efusão do sangue. Deus é, com efeito, sempre admirável e digno de admiração em suas obras ». 79 48. As relações que os membros da Igreja Católica estabeleceram com os outros cristãos a partir do Concílio para diante, fizeram descobrir aquilo que Deus opera naqueles que pertencem a outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Este contacto directo, a vários níveis, entre os pastores e entre os membros das Comunidades, fez-nos tomar consciência do testemunho que os outros cristãos prestam a Deus e a Cristo. Abriu-se assim um espaço muito amplo para toda a experiência ecuménica, que simultaneamente constitui o desafio que se coloca nos nossos tempos. Não é porventura o século XX um tempo de grande testemunho que foi « até à efusão do sangue »? E por acaso este testemunho não diz respeito também às várias Igrejas e Comunidades eclesiais, que tomam o seu nome de Cristo crucificado e ressuscitado?
49. Fruto precioso das relações entre os cristãos e do diálogo teológico que eles realizam, é o crescimento da comunhão. De facto, tais iniciativas tornaram conscientes os cristãos dos elementos de fé que têm em comum. E isto serviu para cimentar ainda mais o seu empenho pela unidade plena. Em tudo isso, o Concílio Vaticano II continua sendo um forte centro de propulsão e orientamento. O diálogo com as Igrejas do Oriente 50. A este propósito e antes de mais, deve-se constatar, com especial gratidão à Providência divina, que a ligação com as Igrejas do Oriente, deteriorada ao longo dos séculos, foi revigorada com o Concílio Vaticano II. Os observadores destas Igrejas, presentes no Concílio ao lado de representantes das Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente, manifestaram publicamente, num momento tão solene para a Igreja Católica, a vontade comum de procurar a comunhão. 51. Esta indicação conciliar foi fecunda quer para as relações de fraternidade, que se foram desenvolvendo através do diálogo da caridade, quer para a discussão doutrinal no âmbito da Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa no seu conjunto. Aquela indicação foi igualmente rica de frutos nas relações com as antigas Igrejas do Oriente. O restabelecimento dos contactos 52. Relativamente à Igreja de Roma e ao Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, o processo a que acabámos de aludir teve início graças à recíproca abertura manifestada pelos Papas João XXIII e Paulo VI, de um lado, e pelo Patriarca Ecuménico Atenágoras I e seus sucessores, do outro. A mudança operada teve a sua expressão histórica no acto eclesial com que « se tirou da memória e do meio das Igrejas » 84 a recordação das excomunhões que novecentos anos antes, em 1054, se tinham tornado símbolo do cisma entre Roma e Constantinopla. Aquele evento eclesial, tão denso de empenho ecuménico, verificou-se nos últimos dias do Concílio, a 7 de Dezembro de 1965. A Assembleia Conciliar concluia-se assim com um acto solene, que era simultaneamente purificação da memória histórica, perdão recíproco e compromisso solidário na busca da comunhão. 54. O outro acontecimento que me apraz recordar, é a celebração do Milénio do Baptismo da Rus' (988-1988). A Igreja Católica, e de modo particular esta Sé Apostólica, quis tomar parte nas celebrações jubilares, e procurou sublinhar como o Baptismo conferido, em Kiev, a S. Vladimiro fora um dos acontecimentos centrais para a evangelização do mundo. A ele devem a sua fé, não apenas as grandes nações eslavas do Leste europeu, mas também aqueles povos que vivem para além dos Montes Urais até ao Alasca. Igrejas irmãs 55. No seu horizonte histórico, o Decreto conciliar Unitatis redintegratio tem presente a unidade que, apesar de tudo, se viveu no primeiro milénio. Tal unidade assume, em determinado sentido, a configuração de modelo: « É grato ao sagrado Concílio trazer à memória de todos o facto de que no Oriente florescem muitas Igrejas particulares ou locais, entre as quais sobressaem as Igrejas Patriarcais; não poucas delas se gloriam de ter origem nos próprios Apóstolos ». 87 O caminho da Igreja tem início em Jerusalém, no dia do Pentecostes, e todo o seu desenvolvimento primordial, na oikoumene de então, se concentrava ao redor de Pedro e dos Onze (cf. Act 2, 14). As estruturas da Igreja no Oriente e no Ocidente foram-se naturalmente formando na linha daquele património apostólico. A sua unidade, dentro do primeiro milénio, mantinha-se naquelas mesmas estruturas, por meio dos Bispos, sucessores dos Apóstolos, em comunhão com o Bispo de Roma. Se hoje, no final do segundo milénio, procuramos restabelecer a plena comunhão, é a esta unidade, assim estruturada, que nos devemos referir. 56. Após o Concílio Vaticano II e retomando tal tradição, restabeleceu-se o uso de atribuir a denominação de « Igrejas irmãs » às Igrejas particulares ou locais reunidas ao redor do seu bispo. Também a supressão das recíprocas excomunhões, removendo um doloroso obstáculo de ordem canónica e psicológica, foi um passo muito significativo no caminho para a plena comunhão. 57. Como almejava o Papa Paulo VI, o nosso claro objectivo é reencontrarmos juntos a plena unidade na legítima diversidade: « Deus concedeu-nos receber na fé este testemunho dos Apóstolos. Por meio do baptismo, nós somos um só em Cristo (cf. Gal 3, 28). Em virtude da sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia unem-nos mais intimamente; participando nos dons de Deus à sua Igreja, estamos em comunhão com o Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo (...). Em cada Igreja local, realiza-se este mistério do amor divino. Porventura não é este o motivo da expressão tradicional e tão bela "Igrejas irmãs", com que gostavam de se designar as Igrejas locais? (cf. Decreto Unitatis redintegratio, 14). Esta vida de Igrejas irmãs, vivemo-la nós durante séculos, celebrando juntos os Concílios ecuménicos, que defenderam o depósito da fé de qualquer alteração. Agora, após um longo período de divisão e incompreensão recíproca, o Senhor concede redescobrirmo-nos como Igrejas irmãs, não obstante os obstáculos que no passado se colocaram entre nós ». 89 Se hoje, às portas do terceiro milénio, procuramos o restabelecimento da plena comunhão, é para a actuação desta realidade que devemos tender, como é a tal realidade que havemos de fazer referência. 58. A partir da reafirmação da comunhão de fé que já existe, o Concílio Vaticano II tirou consequências pastorais, úteis para a vida consagrada dos fiéis e para a promoção do espírito de unidade. Por causa dos estreitíssimos vínculos sacramentais existentes entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, o Decreto Orientalium ecclesiarum pôs em evidência que « a praxe pastoral demonstra, com relação aos irmãos orientais, que se podem e devem considerar as várias circunstâncias das pessoas nas quais nem é lesada a unidade da Igreja, nem há perigos a evitar, mas urgem a necessidade da salvação e o bem espiritual das almas. Por isso, a Igreja Católica, consideradas as circunstâncias de tempos, lugares e pessoas, muitas vezes tem usado e usa de modos de agir mais suaves, a todos dando os meios de salvação e o testemunho de caridade entre os cristãos através da participação nos sacramentos e em outras funções e coisas sagradas ». 94 Progressos do diálogo 59. Desde a sua criação em 1979, a Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa no seu conjunto trabalhou intensamente, orientando progressivamente a sua pesquisa para aquelas perspectivas que, de comum acordo, tinham sido determinadas com o objectivo de restabelecer a plena comunhão entre as duas Igrejas. Tal comunhão fundada na unidade de fé, em continuidade com a experiência e a tradição da Igreja antiga, encontrará a sua expressão plena na concelebração da santa Eucaristia. Com espírito positivo e baseando-se sobre aquilo que temos em comum, a Comissão mista pôde avançar substancialmente e, como tive ocasião de declarar ao venerado Irmão, Sua Santidade Dimítrios I, Patriarca ecuménico, ela chegou a exprimir « aquilo que a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa já podem professar juntas como fé comum no mistério da Igreja e no vínculo entre a fé e os sacramentos ». 97 A Comissão pôde ainda constatar e afirmar que, « nas nossas Igrejas, a sucessão apostólica é fundamental para a santificação e a unidade do povo de Deus ». 98 Trata-se de pontos de referência importantes para a continuação do diálogo. Mais: estas afirmações feitas conjuntamente constituem a base que habilita os católicos e os ortodoxos a prestarem desde agora, no nosso tempo, um testemunho comum, fiel e concorde, para que o nome do Senhor seja anunciado e glorificado. 60. Mais recentemente, a Comissão mista internacional realizou um passo significativo na questão tão delicada do método a seguir na busca da plena comunhão entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, questão essa que frequentemente exasperou as relações entre católicos e ortodoxos. Ela pôs as bases doutrinais para uma positiva solução do problema, que se funda sobre a doutrina das Igrejas irmãs. Neste contexto, também apareceu claramente que o método a seguir para a plena comunhão é o diálogo da verdade, alimentado e amparado pelo diálogo da caridade. O reconhecimento às Igrejas Orientais Católicas do direito de se organizarem e realizarem o seu apostolado, bem como o efectivo envolvimento destas Igrejas no diálogo da caridade e no diálogo teológico favorecerão não apenas um respeito recíproco, real e fraterno, entre os ortodoxos e os católicos que vivem no mesmo território, mas também o seu empenho comum na busca da unidade. 99 Um passo em frente foi dado. O empenhamento deve continuar. Já desde agora se pode, porém, constatar uma pacificação dos ânimos, que torna a busca mais fecunda. 61. Nesta perspectiva, a Igreja Católica nada mais deseja senão a plena comunhão entre Oriente e Ocidente. Para isso, inspira-se na experiência do primeiro milénio. Nesse período, de facto, « o desenvolvimento de diferentes experiências de vida eclesial não impedia que, mediante relações recíprocas, os cristãos pudessem continuar a saborear a certeza de estarem na sua própria casa em qualquer Igreja, porque de todas se elevava, numa admirável variedade de línguas e entoações, o louvor do único Pai, por Cristo, no Espírito Santo; todas se reuniam para celebrar a Eucaristia, coração e modelo da comunidade, não só pelo que diz respeito à espiritualidade ou à vida moral, mas também para a própria estrutura da Igreja, na variedade dos ministérios e dos serviços sob a presidência do Bispo, sucessor dos Apóstolos. Os primeiros Concílios são um testemunho eloquente desta constante unidade na diversidade ». 102 Como recompor tal unidade, após quase mil anos? Eis a grande tarefa que a Igreja Católica deve cumprir, e que pesa igualmente sobre a Igreja Ortodoxa. Daqui se compreende toda a actualidade do diálogo, amparado pela luz e pela força do Espírito Santo. Relações com as antigas Igrejas do Oriente 62. Desde o Concílio Vaticano II em diante, a Igreja Católica, com modalidades e ritmos diversos, estreitou relações fraternas também com aquelas antigas Igrejas do Oriente, que contestaram as fórmulas dogmáticas dos Concílios de Éfeso e de Calcedónia. Todas estas Igrejas enviaram observadores como delegados ao Concílio Vaticano II; os seus Patriarcas honraram-nos com a sua visita, e o Bispo de Roma pôde falar com eles como a irmãos que, após longo tempo, felizes se reencontram. 63. Para as tradicionais controvérsias sobre a cristologia, os contactos ecuménicos tornaram, assim, possíveis alguns esclarecimentos essenciais, a ponto de nos permitir confessar juntos a fé que nos é comum. Uma vez mais, há que constatar que uma aquisição tão importante é seguramente fruto da pesquisa teológica e do diálogo fraterno. E mais. Ela serve-nos de encorajamento: mostra- -nos, de facto, que o caminho percorrido é justo e que razoavelmente se pode esperar encontrar juntos a solução para as outras questões controversas. Diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais no Ocidente 64. No amplo plano traçado para a restauração da unidade entre todos os cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo toma igualmente em consideração as relações com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente. Com o intuito de instaurar um clima de fraternidade cristã e de diálogo, o Concílio situa as suas indicações no âmbito de duas considerações de ordem geral: uma de carácter histórico-psicológico, e outra de carácter teológico-doutrinal. Por um lado, o citado documento ressalta: « As Igrejas e Comunidades eclesiais, que se separaram da Sé Apostólica Romana naquela grave perturbação iniciada no Ocidente já pelos fins da Idade Média, ou em tempos posteriores, continuam, contudo, ligadas à Igreja Católica pelos laços de uma peculiar afinidade devida à longa convivência do povo cristão na comunidade eclesiástica durante os séculos passados ». 109 Por outro lado e com igual realismo, constata-se: « É preciso, contudo, reconhecer que entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja Católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada ». 110 65. Comuns são as raízes, tal como semelhantes, apesar das diferenças, são as orientações que guiaram no Ocidente o desenvolvimento da Igreja Católica e das Igrejas e Comunidades saídas da Reforma. Consequentemente elas possuem uma característica ocidental comum. As « discrepâncias » acima acenadas, ainda que importantes, não excluem, portanto, influências e complementariedade recíproca.
67. Apareceram divergências doutrinais e históricas do tempo da Reforma, a propósito da Igreja, dos sacramentos e do Ministério ordenado. Por isso, o Concílio requer que « se tome como objecto do diálogo a doutrina sobre a Ceia do Senhor, sobre os outros sacramentos, sobre o culto e sobre os ministérios da Igreja ». 120
70. Esta busca difícil e delicada, que implica problemas de fé e respeito da consciência própria e alheia, foi acompanhada e sustentada pela oração da Igreja Católica e das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. A oração pela unidade, já tão radicada e difundida no tecido conectivo eclesial, mostra que a importância da questão ecuménica não passa despercebida aos cristãos. Exactamente porque a busca da plena unidade exige um confronto de fé entre crentes que se apelam ao único Senhor, a oração é a fonte de iluminação acerca da verdade que se há-de acolher em toda a sua integridade. Relações eclesiais 71. É preciso também dar graças à Providência divina por todos os acontecimentos que testemunham o progresso no caminho da busca da unidade. A par do diálogo teológico, há que mencionar oportunamente as outras formas de encontro, a oração em comum e a colaboração prática. O Papa Paulo VI deu um forte impulso a este processo com a sua visita à sede do Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, que teve lugar a 10 de Junho de 1969, e encontrando muitas vezes os representantes de várias Igrejas e Comunidades eclesiais. Estes contactos contribuem eficazmente para melhorar o conhecimento recíproco e fazer crescer a fraternidade cristã. 72. Isto vale sobretudo para os países europeus, onde tiveram início estas divisões, e para a América do Norte. Neste contexto, e sem querer diminuir as demais visitas, merecem especial relevo, no continente europeu, as duas feitas à Alemanha, em Novembro de 1980 e em Abril-Maio de 1987 respectivamente; a visita à Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales), em Maio-Junho de 1982; à Suíça, no mês de Junho de 1984; aos Países Escandinavos e Nórdicos (Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia), onde me desloquei em Junho de 1989. Na alegria, no respeito recíproco, na solidariedade cristã e na oração, encontrei tantos e tantos irmãos, todos eles comprometidos na busca da fidelidade ao Evangelho. A constatação de tudo isto foi para mim fonte de grande encorajamento. Experimentámos a presença do Senhor entre nós. 73. Motivo de grande alegria é, ainda, a constatação de como, no período pós-conciliar, abundam, nas diversas Igrejas locais, as iniciativas e acções a favor da unidade dos cristãos, as quais estendem sucessivamente a sua incidência ao nível das Conferências episcopais, de cada uma das dioceses e comunidades paroquiais, como também dos diversos ambientes e movimentos eclesiais. Colaborações realizadas 74. « Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus » (Mt 7, 21). A coerência e a honestidade das intenções e afirmações de princípio verificam-se pela sua aplicação à vida concreta. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo assinala que, nos outros cristãos, « a sua fé em Cristo produz frutos de louvor e acção de graças pelos benefícios recebidos de Deus. Há também, entre eles, um vivo sentido da justiça e uma sincera caridade para com o próximo ». 125 75. Esta cooperação, que recebe inspiração do próprio Evangelho, deixa de ser uma mera acção humanitária, para os cristãos. Mas tem a sua razão de ser na palavra do Senhor: « Tive fome e destes-Me de comer » (Mt 25, 35). Como já sublinhei, a cooperação de todos os cristãos manifesta claramente aquele grau de comunhão que existe já entre eles. 127 76. Neste contexto, como não recordar o interesse ecuménico pela paz, que se exprime na oração e na acção com uma participação crescente dos cristãos e uma motivação teológica que pouco a pouco se vai tornando mais profunda? Nem poderia ser de outro modo. Porventura não acreditamos nós em Jesus Cristo, Príncipe da paz? Os cristãos estão cada vez mais unidos na rejeição da violência, qualquer tipo de violência, desde as guerras à injustiça social.
III. QUANTA EST NOBIS VIA?
Continuar e intensificar o diálogo
78. No movimento ecuménico, não são apenas a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas que possuem esta noção exigente da unidade querida por Deus. A tendência para tal unidade é expressa também por outros. 129 79. Já desde agora, é possível individuar os argumentos que ocorre aprofundar para se alcançar um verdadeiro consenso de fé: 1) as relações entre Sagrada Escritura, suprema autoridade em matéria de fé, e a Sagrada Tradição, indispensável interpretação da palavra de Deus; 2) a Eucaristia, sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, oferta de louvor ao Pai, memória sacrifical e presença real de Cristo, efusão santificadora do Espírito Santo; 3) a Ordem, como sacramento, para o tríplice ministério do episcopado, do presbiterado e do diaconado; 4) o Magistério da Igreja, confiado ao Papa e aos Bispos em comunhão com ele, concebido como responsabilidade e autoridade em nome de Cristo para o ensino e preservação da fé; 5) a Virgem Maria, Mãe de Deus e Ícone da Igreja, Mãe espiritual que intercede pelos discípulos de Cristo e pela humanidade inteira.
80. Enquanto prossegue o diálogo sobre novas temáticas ou se desenvolve a níveis mais profundos, temos uma tarefa nova a realizar: como receber os resultados conseguidos até agora. Estes não podem permanecer como simples afirmações das Comissões bilaterais, mas devem tornar-se património comum. Para que isto se verifique, reforçando assim os laços de comunhão, é preciso um sério exame que, segundo modos, formas e competências diversas, há-de envolver todo o povo de Deus. De facto, trata-se de questões que, frequentemente, dizem respeito à fé e, como tais, requerem o consenso universal, que se estende dos Bispos aos fiéis leigos, pois todos receberam a unção do Espírito Santo. 134 É o mesmo Espírito que assiste o Magistério e suscita o sensus fidei. 81. Este processo, que se há-de efectuar com prudência e em atitude de fé, terá a assistência do Espírito Santo. Para que tenha êxito favorável, é necessário que os seus resultados sejam oportunamente divulgados por pessoas competentes. Para semelhante objectivo, é de grande importância o contributo que os teólogos e Faculdades de Teologia estão chamados a oferecer, no cumprimento do seu carisma na Igreja. Claro está que as comissões ecuménicas têm, a este respeito, responsabilidades e funções totalmente singulares.
82. Compreende-se como a gravidade do compromisso ecuménico interpele profundamente os fiéis católicos. O Espírito convida-os a um sério exame de consciência. A Igreja Católica deve entrar naquilo que se poderia chamar « diálogo da conversão », no qual está posto o fundamento interior do diálogo ecuménico. Em tal diálogo, que se realiza diante de Deus, cada um deve procurar os próprios erros, confessar as suas culpas, e colocar-se nas mãos d'Aquele que é o Intercessor junto do Pai, Jesus Cristo. 83. Falei da vontade do Pai, do espaço espiritual onde cada comunidade escuta o apelo a superar os obstáculos à unidade. Pois bem, todas as Comunidades cristãs sabem que semelhante exigência e um tal superamento, graças à força que o Espírito dá, não estão fora do seu alcance. Com efeito, todas têm mártires da fé cristã. 137 Não obstante o drama da divisão, estes irmãos conservaram em si mesmos uma união a Cristo e a seu Pai tão radical que pôde chegar até ao derramamento do sangue. Mas não é, porventura, essa mesma união que é chamada em causa naquilo que classifiquei como « diálogo da conversão »? Não é, por acaso, este diálogo que sublinha a necessidade de seguir em toda a sua profundidade a experiência da verdade para a plena comunhão? 84. Numa visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum. Este inclui também os mártires do nosso século, mais numerosos do que se pensa, e mostra como, a um nível profundo, Deus manteve entre os baptizados a comunhão na exigência suprema da fé, manifestada com o sacrifício da vida. 138 Se se pode morrer pela fé, isso demonstra que se pode alcançar a meta, quando se trata de outras formas da mesma exigência. Já constatei, e com alegria, como a comunhão, imperfeita mas real, é mantida e cresce a muitos níveis da vida eclesial. Considero agora que ela seja já perfeita naquilo que todos nós consideramos o ápice da vida de graça, o martyria até à morte, a comunhão mais verdadeira que possa existir com Cristo que derrama o seu Sangue e, neste sacrifício, aproxima aqueles que outrora estavam longe (cf. Ef 2, 13). 85. Visto que, na sua infinita misericórdia, Deus pode tirar o bem até mesmo das situações que ofendem o seu desígnio, podemos então descobrir que o Espírito fez com que as oposições servissem, em algumas circunstâncias, para explicitar aspectos da vocação cristã, como sucede na vida dos santos. Apesar da divisão, que é um mal de que nos devemos curar, todavia realizou-se como que uma comunicação da riqueza da graça, que está destinada a embelezar a koinônia: a graça de Deus estará com todos aqueles que, seguindo o exemplo dos santos, se esforçam por favorecer as suas exigências. Como podemos nós hesitar em converter-nos aos anseios do Pai? Ele está connosco.
86. A Constituição Lumen gentium, numa afirmação fundamental que ressoa depois no Decreto Unitatis redintegratio, 141 escreve que a única Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica. 142 O Decreto sobre o ecumenismo sublinha a presença nela da plenitude (plenitudo) dos instrumentos de salvação. 143 A plena unidade realizar-se-á quando todos participarem da plenitude dos meios de salvação que Cristo confiou à sua Igreja. 87. Ao longo do caminho que leva à plena unidade, o diálogo ecuménico esforça-se por suscitar uma recíproca ajuda fraterna, por meio da qual as Comunidades se dedicam a dar mutuamente aquilo de que cada uma tem necessidade para crescer segundo o desígnio de Deus que leva à plenitude definitiva (cf. Ef 4, 11-13). Como disse, nós, enquanto Igreja Católica, estamos conscientes de ter recebido muito do testemunho, da procura e mesmo até da maneira como foram sublinhados e vividos pelas outras Igrejas e Comunidades eclesiais certos bens cristãos comuns. Entre os progressos realizados durante os últimos trinta anos, há que atribuir um lugar de destaque a essa recíproca influência fraterna. Na etapa a que chegámos, 144 tal dinamismo de mútuo enriquecimento deve ser tomado seriamente em consideração. Baseado sobre a comunhão que já existe, graças aos elementos eclesiais presentes nas Comunidades cristãs, tal dinamismo não deixará de impelir para a comunhão plena e visível, meta suspirada do caminho que estamos realizando. É a forma ecuménica da lei evangélica da partilha. Isto me incita a repetir: « É preciso em tudo demonstrar o cuidado de ir ao encontro daquilo que os nossos irmãos cristãos, legitimamente, desejam e esperam de nós, conhecendo o seu modo de pensar e a sua sensibilidade (...). É necessário que os dons de cada um se desenvolvam para a utilidade e proveito de todos ». 145 O ministério de unidade do Bispo de Roma 88. Entre todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o ministério do Sucessor do apóstolo Pedro, o Bispo de Roma, que Deus constituiu como « perpétuo e visível fundamento da unidade », 146 e que o Espírito ampara para que torne participantes deste bem essencial todos os outros. Segundo a feliz expressão do Papa Gregório Magno, o meu ministério é o de servus servorum Dei. Esta definição preserva o melhor possível do risco de separar a potestade (e particularmente o primado) do ministério, o que estaria em contradição com o significado de potestade dado pelo Evangelho: « Eu estou no meio de vós como aquele que serve » (Lc 22, 27), diz o Senhor nosso Jesus Cristo, Chefe da Igreja. Por outra parte, como pude afirmar por ocasião do encontro no Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, a 12 de Junho de 1984, a convicção da Igreja Católica de, na fidelidade à Tradição apostólica e à fé dos Padres, ter conservado, no ministério do Bispo de Roma, o sinal visível e o garante da unidade, constitui uma dificuldade para a maior parte dos outros cristãos, cuja memória está marcada por certas recordações dolorosas. Por quanto sejamos disso responsáveis, com o meu Predecessor Paulo VI imploro perdão. 147 89. Todavia, é significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de Roma se tenha tornado actualmente objecto de estudo, imediato ou em perspectiva, e igualmente significativo e encorajador é que uma tal questão esteja presente como tema essencial não apenas nos diálogos teológicos que a Igreja Católica mantém com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico no conjunto do movimento ecuménico. Recentemente, os participantes na Va Assembleia Mundial da Comissão « Fé e Constituição » do Conselho Ecuménico das Igrejas, realizada em Santiago de Compostela, recomendaram que ela « desse início a um novo estudo sobre a questão de um ministério universal da unidade cristã ». 148 Após séculos de duras polémicas, as outras Igrejas e Comunidades eclesiais cada vez mais perscrutam com um novo olhar tal ministério de unidade. 149 90. O Bispo de Roma é o Bispo da Igreja que conserva o testemunho do martírio de Pedro e de Paulo: « Por um misterioso desígnio da Providência, é em Roma que ele 1 conclui o seu caminho de seguimento de Jesus, como é em Roma que dá esta máxima prova de amor e de fidelidade. Em Roma, Paulo, o Apóstolo dos Gentios, dá também o seu testemunho supremo. A Igreja de Roma tornava-se assim a Igreja de Pedro e de Paulo ». 150 91. O Evangelho de Mateus traça e especifica a missão pastoral de Pedro na Igreja: « És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem t'o revelou, mas o meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos Céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos Céus » (16, 17-19). Lucas põe em evidência que Cristo recomenda a Pedro de confirmar os irmãos, mas, ao mesmo tempo, faz-lhe conhecer a sua fraqueza humana e necessidade de conversão (cf. 22, 31-32). É como se, sobre o horizonte da fraqueza humana de Pedro, se manifestasse plenamente que o seu particular ministério na Igreja provém totalmente da graça; é como se o Mestre se dedicasse de modo especial à sua conversão, a fim de o preparar para a tarefa que está para lhe confiar na sua Igreja, e fosse muito exigente com ele. A mesma função de Pedro, sempre ligada a uma realista afirmação da sua fraqueza, encontra-se no quarto Evangelho: « Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes? (...) Apascenta as minhas ovelhas » (cf. 21, 15-19). Significativo é ainda que, segundo a primeira Carta de Paulo aos Coríntios, Cristo ressuscitado tenha aparecido a Cefas e em seguida aos doze (cf. 15, 5). 92. Quanto a Paulo, ele conclui a descrição do seu ministério com a surpreendente afirmação que lhe foi concedido ouvir dos lábios do Senhor: « Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela totalmente », podendo em seguida exclamar: « Quando me sinto fraco, então é que sou forte » (2 Cor 12, 9-10). Esta é uma característica fundamental da experiência cristã. 93. Ligado como está à tríplice profissão de amor de Pedro que corresponde à tríplice negação, o seu sucessor sabe que deve ser sinal de misericórdia. O seu ministério é um ministério de misericórdia, nascido de um acto de misericórdia de Cristo. Toda esta lição do Evangelho deve ser constantemente relida, para que o exercício do ministério petrino nada perca da sua autenticidade e transparência. 94. Este serviço da unidade, radicado na obra da misericórdia divina, está confiado, no seio mesmo do colégio dos Bispos, a um daqueles que receberam do Espírito o encargo, não de exercer o poder sobre o povo — como fazem os chefes das nações e os grandes (cf. Mt 20, 25; Mc 10, 42) —, mas de o guiar para que possa encontrar-se em pastagens tranquilas. Tal encargo pode exigir a oferta da própria vida (cf. Jo 10, 11-18). Depois de ter mostrado como Cristo é « o único Pastor, na unidade do qual todos são um só », Santo Agostinho exorta: « Estejam todos os pastores no único Pastor e proclamem a voz única do Pastor; oiçam as ovelhas esta voz e sigam o seu Pastor: não este ou aquele, mas o único Pastor. Apregoem todos com Ele uma só voz e não haja vozes diversas. (...) Oiçam as ovelhas esta voz, purificada de toda a divisão, livre de toda a heresia ». 151 A missão do Bispo de Roma no grupo de todos os Pastores consiste precisamente em « vigiar » (episkopein) como uma sentinela, de modo que, graças aos Pastores, se ouça em todas as Igrejas particulares a verdadeira voz de Cristo-Pastor. Assim, em cada uma das Igrejas particulares a eles confiadas, realiza-se a una, sancta, catholica et apostolica Ecclesia. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro, e, desse modo, na unidade de Cristo. 95. Mas tudo isto deve realizar-se sempre na comunhão. Quando a Igreja Católica afirma que a função do Bispo de Roma corresponde à vontade de Cristo, ela não separa esta função da missão confiada ao conjunto dos Bispos, também eles « vicários e legados de Cristo ». 153 O Bispo de Roma pertence ao seu « colégio », e eles são os seus irmãos no ministério. 96. Tarefa imensa, que não podemos recusar, mas que sozinho não posso levar a bom termo. A comunhão real, embora imperfeita, que existe entre todos nós, não poderia induzir os responsáveis eclesiais e os teólogos a instaurarem comigo, sobre este argumento, um diálogo fraterno, paciente, no qual nos pudéssemos ouvir, pondo de lado estéreis polémicas, tendo em mente apenas a vontade de Cristo para a sua Igreja, deixando-nos penetrar do seu grito: « Que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste » (Jo 17, 21)?
97. A Igreja Católica, tanto na sua praxis como nos textos oficiais, sustenta que a comunhão das Igrejas particulares com a Igreja de Roma, e dos seus Bispos com o Bispo de Roma, é um requisito essencial — no desígnio de Deus — para a comunhão plena e visível. De facto, é necessário que a plena comunhão, de que a Eucaristia é a suprema manifestação sacramental, tenha a sua expressão visível num ministério em que todos os Bispos se reconheçam unidos em Cristo, e todos os fiéis encontrem a confirmação da própria fé. A primeira parte dos Actos dos Apóstolos apresenta Pedro como aquele que fala em nome do grupo apostólico e serve a unidade da comunidade — e isto no respeito da autoridade de Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém. Esta função de Pedro deve permanecer na Igreja para que, sob o seu único Chefe que é Cristo Jesus, ela seja no mundo, visivelmente, a comunhão de todos os seus discípulos.
98. O movimento ecuménico do nosso século, mais do que as iniciativas ecuménicas dos séculos passados de que importa, contudo, não subestimar a importância, foi caracterizado por uma perspectiva missionária. No versículo joanino que serve de inspiração e motivo condutor — « que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste (Jo 17, 21) » — foi sublinhada a frase para que o mundo creia com tal vigor que se corre o risco de esquecer, às vezes, que, no pensamento do evangelista, a unidade é sobretudo para a glória do Pai. De qualquer modo, é claro que a divisão dos cristãos está em contradição com a Verdade que têm a missão de difundir, comprometendo gravemente o seu testemunho. Bem o compreendera e afirmara o meu Predecessor, o Papa Paulo VI, na sua Exortação apostólica Evangelii nuntiandi: « Como evangelizadores, nós devemos apresentar aos fiéis de Cristo, não já a imagem de homens divididos e separados por litígios que nada edificam, mas sim a imagem de pessoas amadurecidas na fé, capazes de se encontrar para além de tensões que se verifiquem, graças à procura comum, sincera e desinteressada da verdade. Sim, a sorte da evangelização anda sem dúvida ligada ao testemunho de unidade dado pela Igreja (...). Nisto há-de ser vista uma fonte de responsabilidade, como também de conforto. Quanto a este ponto, nós quereríamos insistir sobre o sinal da unidade entre todos os cristãos, como caminho e instrumento da evangelização. A divisão dos cristãos entre si é um estado de facto grave, que chega a afectar a própria obra de Cristo ». 156 99. Quando afirmo que para mim, Bispo de Roma, o empenhamento ecuménico constitui « uma das prioridades pastorais » do meu pontificado, 157 é por ter no pensamento o grave obstáculo que a divisão representa para o anúncio do Evangelho. Uma Comunidade cristã que crê em Cristo e deseja, com o ardor do Evangelho, a salvação da humanidade, não pode de forma alguma fechar-se ao apelo do Espírito que orienta todos os cristãos para a unidade plena e visível. Trata-se de um dos imperativos da caridade que deve ser acolhido sem hesitações. O ecumenismo não é apenas uma questão interna das Comunidades cristãs, mas diz respeito ao amor que Deus, em Cristo Jesus, destina ao conjunto da humanidade; e obstaculizar este amor é uma ofensa a Ele e ao seu desígnio de reunir todos em Cristo. O Papa Paulo VI escrevia ao Patriarca Ecuménico Atenágoras I: « Possa o Espírito Santo guiar-nos no caminho da reconciliação, para que a unidade das nossas Igrejas se torne um sinal cada vez mais luminoso de esperança e de conforto para toda a humanidade ». 158
EXORTAÇÃO
100. Tendo-me dirigido recentemente aos Bispos, ao clero e aos fiéis da Igreja Católica para indicar o caminho a seguir na celebração do Grande Jubileu do Ano Dois Mil, afirmei, entre outras coisas, que « a melhor preparação para a passagem bimilenária não poderá exprimir-se senão pelo renovado empenho na aplicação, fiel quanto possível, do ensinamento do Vaticano II à vida de cada um e da Igreja inteira ». 159 O Concílio é o grande início — como que o Advento — daquele itinerário que nos conduz ao limiar do Terceiro Milénio. Considerando a importância que a Assembleia Conciliar atribuiu à obra de restauração da unidade dos cristãos, nesta nossa época de graça ecuménica, pareceu-me necessário corroborar as convicções fundamentais que o Concílio esculpiu na consciência da Igreja Católica, recordando-as à luz dos progressos entretanto realizados para a plena comunhão de todos os baptizados. 101. Exorto, portanto, os meus Irmãos no episcopado a darem toda a atenção a tal empenho. Os dois Códigos de Direito Canónico incluem entre as responsabilidades do Bispo a de promover a unidade de todos os cristãos, apoiando toda a acção ou iniciativa, tendente a promovê-la, na certeza de que a Igreja a isso está obrigada por expressa vontade de Cristo. 160 Isto faz parte da missão episcopal e é uma obrigação que deriva directamente da fidelidade a Cristo, Pastor da Igreja. Todos os fiéis, porém, são convidados pelo Espírito de Deus a fazer o possível, para que se recomponham os laços de união entre todos os cristãos e cresça a colaboração entre os discípulos de Cristo: « A solicitude na restauração da união vale para toda a Igreja, tanto para os fiéis como para os pastores. Afecta a cada um em particular, de acordo com a sua capacidade ». 161
103. Eu, João Paulo, humilde servus servorum Dei, fazendo minhas as palavras do apóstolo Paulo — cujo martírio, unido ao do apóstolo Pedro, conferiu a esta Sé de Roma o esplendor do seu testemunho —, digo a vós, fiéis da Igreja Católica, e a vós, irmãos e irmãs das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, « trabalhai na vossa perfeição, confortai-vos mutuamente, tende um mesmo sentir, vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco (...). A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós » (2 Cor 13, 11.13). IOANNES PAULUS PP. II
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Cornelio Dias
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