A cada momento que utilizamos o melhor de nós, em justa medida, ficamos mais próximos do ápice do bem-estar
Rita Foelker • Ilustrações: Igor Ribeiro
A virtude é um dos temas da Ética a Nicômaco - principal tratado de ética escrito por Aristóteles (384-322 a.C.) e supostamente dirigido a seu filho -, de onde foram extraídos os fragmentos abaixo.
A palavra "virtude", em um sentido ético, pode ser entendida como uma qualidade moral ou intelectual positiva do ser humano, que o leva a agir visando ao bem. Tal virtude em Aristóteles (areie) costuma ser traduzida como excelência moral e assim ele a define:
"A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio-termo (relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento/prudência o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio-termo (mesotés). Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio-termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo".
Duas formas de virtude estão presentes na Ética a Nicômaco:
A virtude intelectual (dianóià) é representada principalmente pela sabedoria e pela prudência (phrónesis), adquiridas pela instrução e que trazem calma e tranquilidade ao homem. A virtude moral é uma disposição de espírito ou hábito de escolher em todas as situações a justa medida que convém à nossa natureza. As pessoas que têm essa virtude desenvolvem a moderação e o bom-senso (sophrosyne).
A felicidade é o fim último da virtude, não como objetivo do indivíduo, mas da polis, razão pela qual se pode dizer que, para Aristóteles, a ética está subordinada à política. Segundo David Ross, "a virtude do Estado está conforme a virtude de seus cidadãos". Não se trata, portanto, de um objetivo religioso nem divino, relacionado à vontade dos deuses, mas de construir uma vida social feliz e harmoniosa.
A plenitude do ser humano
De acordo com Márcio Paixão, a busca da ética é a busca do fim do próprio homem. E este fim (télos), segundo o mesmo autor, não se refere apenas a uma "finalidade" - como se costuma traduzir em português -, mas também a uma espécie de "plenitude", o que reforça a ideia de que a excelência moral e a conduta ética constituem a realização do grande e verdadeiro propósito de nossas vidas, nosso ponto máximo, nossa plenitude enquanto seres.
O tratamento que Aristóteles confere ao tema da virtude moral nos permite perceber duas ideias em destaque:
1) as virtudes se transmitem pelo exemplo e
2) as virtudes são disposições de espírito que se concretizam em ações.
Diferentemente de Platão (428/427-347 a.C.), que considera a virtude como inata, ou seja, como uma qualidade que o indivíduo já traz consigo ao nascer, Aristóteles entende que ela somente pode ser adquirida como um hábito (ethos):
"(...) quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra 'hábito'. É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado por hábito".
O saber da virtude não é um saber discursivo, conceituai. É um saber prático:
"As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as - por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam ci-taristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente" .
Disso se pode deduzir que tal peculiaridade da virtude moral, certamente, reflete-se no modo de "ensiná-la", que não consiste em falar ou escrever sobre a excelência moral, mas em agir eticamente e, assim, influenciar o educando. A convivência com um agente virtuoso constitui o melhor meio de aprendizado.
Considerando-se que, para Aristóteles, a virtude não é um bem do sujeito, ninguém nasce bom ou ruim. A virtude se relaciona diretamente a uma práxis, e aquele que deixa de praticá-la também deixa de ser virtuoso.
Falar vs. agir
Uma certa confusão de conceitos, bastante comum em sociedades atuais, conduz a pensar que uma pessoa que prega certas normas de comportamento e faz um discurso sobre a falha de ca-ráter do outro é uma pessoa que "tem moral" e é virtuosa, no sentido de que conhece a virtude para poder falar sobre ela.
Não que tal pessoa não tenha moral. Mas, se ela realmente tem, como todos os seres racionais e conscientes de seus atos, isso não se dá porque é capaz de falar da ação do outro, e sim porque responde a si mesma. Porque a condição de "Ser moral" é inseparável de nós, e nossos mínimos atos são atos morais, visto que nunca deixamos de estar sujeitos ao julgamento de nossa própria consciência quando fazemos uso de nossa liberdade de pensamento e de ação.
O fato de apregoarmos regras, de emitirmos julgamentos, elogios e condenações dos atos alheios, não reflete propriamente nossa moral, a qual se exterioriza em atos e não em palavras. Contudo, reflete nosso
Aristóteles caminha entre seus alunos |
conceito de moralidade e imoralidade, que, quando se volta para o outro, deixa algumas vezes de ser moral para ser moralista.
Agora, olhar para nós mesmos não significa que sejamos cegos para o que ocorre à nossa volta, ou ingénuos perante o que acontece no mundo. Há um espaço onde se pode enxergar a realidade sem exercer o moralismo, que tantas vezes se subverte numa falsa moral ou hipocrisia.
Educação para a virtude
Creio ser possível afirmar que uma das causas desse moralismo e hipocrisia é precisamente uma educação que visa moldar comportamentos em vez de atuar mediante o exemplo e convidar à reflexão, como queria Aristóteles. Trata-se de uma forma de educação equivocada em seus meios e fins e que lida mais com o exterior que com o interior. Tal educação não faz olhar para si mesmo, só para o que se demonstra socialmente, e leva a apreciar o comportamento do outro como quem tivesse o direito de arbitrar qual poderia ser ou teria sido a melhor conduta para ele em dada situação.
Uma educação verdadeiramente moral, interessada no desenvolvimento da virtude moral, nos conduziria a observar a nós mesmos, a compreender nossos atos e as motivações de nossos comportamentos, em vez de nos ensinar a definir bom e mau, certo e errado, para o outro. Ela nos colocaria no caminho da verdadeira moral e do desenvolvimento da virtude, ensinando a pensar, deliberar e escolher sabiamente.
Contudo, não basta educar moralmente. A plenitude do ser exige sua educação intelectual, a qual torna possível atingir a prudência (pkrónesis), que consiste na inteligência de escolher os meios para alcançar os fins para viver bem de de modo geral:
"Com referência ao discernimento/prudência, chegaremos à sua definição se considerarmos quais são as pessoas dotadas dessa forma de excelência. Pensa-se que é característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em relação a um aspecto particular - por exemplo, quando se quer saber quais espécies de coisas que concorrem para a saúde e para o vigor físico -, e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de modo geral".
Esse "viver bem", porém, está vinculado à justa medida ou meio-termo (mesotés), um objetivo que se coloca equidistante tanto do excesso como da falta e que pode ser atingido pela aplicação de uma qualidade racional. A prudência para Aris-tóteles se manifesta na escolha, mas não na escolha de fins e sim de meios para se atingir fins, independentemente dos fins visados. Nesse sentido, tanto é prudente aquele que respeita as regras de trânsito para não provocar acidentes quanto o que toma todas as precauções para não deixar pistas de seus crimes. Disso se segue que podemos encontrar a prudência associada aos mais diversos vícios e virtudes, sem que ela mesma deixe de ser aquilo que é, servindo aos mais diferentes propósitos e impossível de ser considerada moralmente boa ou ruim em si mesma.
Alegoria da Virtude, Correggio, 1532-1534 |
Portanto, uma educação digna do cidadão grego deve contemplar tanto aspectos intelectuais quanto morais. E assim podemos pensar também ao refletir sobre a educação na contemporaneidade.
Agir com consciência
Virtude é movimento e práxis. Citando Paulo Paixão: "O 'fim', no domínio ético, é um bem, a saber, o bem do homem, e é alcançado por uma práxis". No entanto, não basta agir, é preciso saber o porquê se age. Por isso, as ações humanas só podem ser consideradas expressões de virtude se partirem de uma atitude reflexiva, à qual o educando precisa também se habituar. Afinal, pode-se realizar um grande bem por acaso, por acidente, por ostentação, por interesse, mas isso não denota virtude. Esta nasce de um conjunto de condições íntimas - vontade, memória, hábito - e no contato direto com a experiência, tornando-se enfim palpável no momento da escolha.
Reflexões finais
Experiências são como travessias. (Bem, ao menos as mais relevantes.) Mas, ao final de cada experiência em que realmente mergulhamos e que se tornou significativa, precisamos cruzar um portal. Virtude surge de um fazer, e é impossível desfazer o feito, desaprender o aprendido. Depois que mudamos, não temos mais como voltar atrás. Não há lugar para nós no jeito antigo, nem nos sentimos satisfeitos com ele. Só dá para seguirmos adiante.
Assim é a conquista da virtude: muito mais que um saber adquirido é uma nova forma de ser.
Podemos passar um tempo em suspenso, entre o portal atrás de nós e o convite à frente, mas não podemos permanecer aí para sempre.
O terreno já mapeado pode nos atrair por ser conhecido, mas, se tentarmos passar muito tempo onde estamos ou se retornarmos ao estado anterior, provocamos insatisfação e inquietude. Algo em nós sabe que existe um lugar melhor à frente e que nos chama, e é aí que Aristóteles vislumbra a felicidade (eudaimoniá).
Quando experimentamos e refletimos, pensando e sentindo as consequências, estamos mudando de dentro para fora e nos tornando mais felizes.
A cada momento que agimos com o melhor de nós, atua-lizamos nossa excelência. E a percepção de que atingimos a justa medida talvez pertença não ao domínio do pensamento e da compreensão racional, mas ao domínio da sensação íntima de ter atuado conforme o máximo desenvolvimento presente de nossas qualidades morais.
Talvez permanecer no ponto mais alto por tempo indefinido ainda seja uma tarefa sobre-humana para os comuns como nós. Somos criaturas de "altos e baixos". Citando André Comte-Sponvílle:
"Toda virtude é um ápice, entre dois vícios, um cume entre dois abismos: assim a coragem, entre covardia e temeridade; a dignidade, entre complacência e egoísmo; ou a doçura, entre cólera e apatia... Mas quem pode viver sempre no ápice? Pensar as virtudes é medir a distância que nos separa delas".
Porém aplicar a virtude na justa medida pode proporcionar o ápice do bem-estar que um ser é capaz de experimentar, uma verdadeira sensação de plenitude em meio aos nossos frequentes desacertos. Uma possível felicidade?...»
Esta Matéria foi publica na Revista: Discutindo Filosofia Ano 2 Nº 11 pp 23-27 Escala Educacional - www.escalaeducacional.com.br