A igreja e a realidade urbana
Ensaio Acadêmico
Por Cornelio A.Dias - 23/07/2012
Subtítulo: Como Deus vê a Cidade
Introdução
Ver a cidade apenas com olhos humano é o que tem sido feito pelos cristãos enquanto Igreja ao longo dos tempos e é por isto que hoje a igreja tem séria dificuldade em ver a realidade urbana ao redor de si, mesmo sendo parte dela, por ter apenas uma visão intra-templo focada apenas numa igreja institucionalizada que está inserida, mas, que se mantém isolada da cidade.
Esta visão deformada também contrapõe a maneira de como Deus vê a cidade; porém, não como o resultado do caos espiritual, moral e social.
Esta reflexão distorcida que a maioria de nós tem em comum ver muito mais o negativo, o cruel, a dor, a injustiça, a opressão, o medo e coisas semelhantes; faz com que nos afastemos dela, frustrando assim a própria expectativa da cidade que anseia pelo desejo e a necessidade de ser vista da fé, da esperança e do amor; e isto nos é possível em Deus, pois somos participantes dela e estamos inseridos nesta realidade.
1. A forma positiva de como Deus vê a cidade na Bíblia:
2. Do Éden a Jerusalém Escatológica até a Nova Jerusalém:
Existem duas imagens geográficas da humanidade e uma apocalíptica, muito claras na Bíblia que são: o Jardim do Éden, a Jerusalém Escatológica e a Nova Jerusalém.
O jardim Éden é prefigurado como a harmonia de Deus com homem com a promessa de se multiplicar para criar as primeiras tribos que se multiplicariam em povos e deles formasse a Jerusalém terrena; esta que será a futura nova Jerusalém como a cidade redimida caracterizada pela diversidade desta unidade.
Diversidade porque seria uma grande multidão impossível de se enumerar, formada por todas as nações, tribos, povos e línguas, e esta riqueza multi-étnica-cultural e linguística que se ajuntariam para receber e celebrar a vinda do Filho para iniciar o Reino de Deus na terra. Então brotará um rebento do toco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará. Is. 11. 1.
Unidade porque estas nações, tribos, povos e línguas futuramente estarão em pé diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence à salvação: Ap. 7. 9 -10.
O Cordeiro que viria redimir e salvar estas nações, tribos e povos seria Ele, o elo de ligação entre todos que clamariam: ao Cordeiro pertence à salvação. Esta é a natureza e a riqueza de uma cidade marcada pela diversidade, símbolo da criatividade e respeito de Deus para todas as culturas, unificadas em Cristo, e assim começa a se desenvolver a cidade que escreveria a história da humanidade. A igreja formou se com a vinda pessoal de Cristo ratificando se assim a formação da Jerusalém escatológica, que se estende até agora, tempo este conhecido por pós – pré - pós, isto é: pós-jardim e pré - Jerusalém e pós nova Jerusalém.
É nesse período que fomos chamados a atuar como igreja, mas, não apenas somente inserida no contexto histórico, e sim interligada a realidade urbana para interagir entre a trama do pecado e a esperança da redenção; entre o já e ainda não. Fomos convocados para viver e desenvolver esta missão.
A Bíblia revela a história de um povo peregrino que anda de cidade em cidade em chegar à terra prometida, escrevendo assim a dolorosa história da redenção e da salvação da humanidade, que é acima de tudo a história do amor de Deus que busca a redimir os povos dos seus pecados.
Nossa história começa no período do jardim à cidade rumo à cidade santa, e não podemos ignorar nenhum deles. O jardim nos mostra como Deus vê o inicio da cidade. Ao criar todas as coisas, viu Deus que era bom. Gn. 1. 31, o seu olhar foi o da bondade e da beleza. Que era o propósito de Deus para humanidade e que também deve ser o propósito da igreja para a cidade.
Não podemos pensar no Jardim como a geografia da tentação e nem como a cidade como propiciadora do pecado, devemos nos lembrar mais do pecado e da serpente (tentador) do que o próprio Deus; e precisamos e devemos admitir lembrar que Deus andava no jardim pela viração daquele fatídico dia. Gn 3. 8. Deus não somente andava no jardim, mas falava. O jardim é uma demonstração clara de que Deus é o Deus da relação. Diante da decisão errada do ser humano, sua fala foi e continua sendo a fala que busca a relação com sua criatura: onde estás? Gn. 3. 9.
Até chegar a nova Jerusalém, é oficio da igreja ecoar nos quatro cantos da terra a mesma voz: onde estás? Este chamado, “onde estás” não deve somente revelar o caráter e o clamor amoroso de Deus, mas, também deve revelar à missão da igreja na cidade cujo caráter é o combater a pré-disposição para o pecado, através da ação restauradora pelo perdão obtido com sacrifício de Cristo, por amor ao pecador.
Embora tenha sido por causa desta disposição para o pecado que Deus lançou o pecador para fora do Jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado; Gn. 3. 23, é que a Igreja deve lançar para fora de si à cidade, a fim de semear numa terra já cultivada, invertendo o sentido de que para se plantar uma seara é necessário atender o “ide”, Mc. 16.15: E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura e não confundir com o “ficai”; [...]
• Lc. 24. 49 [...] "E eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder.
São dois chamados distintos, o ‘ficai’ foi para a igreja primitiva que ainda estava por se estabelecer enquanto que o ‘ide’ foi para a igreja já estabelecida. Certo é que a igreja foi instruída que o viver dela é no aqui e agora com a visão do celeste, e que não somos deste mundo, que o nosso lar é no céu, mas este ensino tem sido mal interpretado, e a igreja erra em não enfatizar que devemos viver no já com o paradigma do ainda não, e que o celeste porvir, a cidade celestial, deve nos impulsionar a viver e desenvolver nossa missão na cidade terrestre.
Sem essa utopia e esperança não tem sentido viver neste mundo. Não fomos chamados para viver separado deste mundo, mas como separados de Deus para o mundo. Se no jardim o ser humano foi expulso, Gn. 3. 24, na nova Jerusalém, conforme informado por João seremos recebidos por Jesus, pelo sangue que nos libertou dos nossos pecados. Ap. 1. 5.
Quando expulsos andamos como errantes e sem-teto nos assentos da vida, agora, redimidos pelo sangue do Cordeiro, entramos nas moradas preparadas por ele mesmo...Este deve ser o principal enfoque da igreja, pois se entraremos nas moradas celestes através de Cristo, a cidade precisa entrar na igreja para que ela também desfrute deste direito; porque somos cidade enquanto igreja, e mesmo não sendo do mundo somos parte dele.
Esta é a trama positiva da história da humanidade, da expulsão ao acolhimento, da condenação a redenção, dos guardas querubins e espadas cortantes, Gn. 3. 24, ao Cordeiro de Deus, da servidão à adoração, por isto a pergunta, ‘onde estás’; no contexto atual, deve ser feita agora para a Igreja!
Se a igreja hoje, ela está inserida na cidade porem escondida no templo ou se está inserida no templo, mas, escondida na cidade?
As duas condições acima propostas neutralizam a igreja e anulam a sua efetividade, e desta feita, o ‘ide’ e o ‘ficai’ deve ser reinterpretados no contexto atual; nesta realidade contemporânea, a igreja tem que atender os dois chamados simultaneamente; ela pode ficar em Jerusalém assim como tem que ir a Jerusalém.
Da expulsão do Jardim do Éden às portas de Jerusalém continua ecoando esse onde estás. Eis, portanto, a missão da igreja que na verdade é a missão de Deus, que é a de ajudar as pessoas a responderem a pergunta: onde estás? Deus, por meio da sua igreja, continua perguntando aos expulsos do jardim: onde estas?
Gn. 29. 7 Disse ele: Eis que ainda vai alto o dia; não é hora de se ajuntar o gado; dai de beber às ovelhas, e ide apascentá-las.
Esta referencia bíblica define bem a maneira como a igreja deve proceder com relação a cidade; quando ela diz, ‘dai de beber as ovelhas’ podemos entender que precisamos ‘ficar’ para cuidar daqueles que foram trazidos da cidade, e quando ela exorta que ainda não é a hora de ajuntar, entende se que devemos ‘ir’ buscar aquelas que ainda estão lá fora perdidas na cidade.
1. A forma negativa de como Deus vê a cidade na Bíblia:
2. Depois do Jardim do Éden e antes da velha Cidade (Jerusalém).
Após a expulsão do jardim do Éden o ser humano precisou recomeçar sua vida. No Jardim ele possuía alimentos, frutas, sombra e água fresca. Agora, sem teto, em fadigas obterá dela [terra] o sustento durante os dias da tua vida. Ela produzirá cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo.
Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes a terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás” Gn. 3.17 - 19. Agora, o ser humano tem que “lavrar a terra de que fora tomado” Gn. 3. 23. Agora, depois do Jardim do Éden e antes da velha Jerusalém é que a trama negativa da história humana desenvolve a sua fase mais critica na historia da humanidade.
O pão a sombra e água agora passam a ser uma busca desesperada do ser humano até os dias de hoje. Pão como símbolo do alimento diário, sombra como teto, (casa e lar) e a água como símbolo das coisas que saciam a sede do ser humano. Nessa busca encontramos uma história de beleza e maldade cujo personagem principal é o próprio ser humano.
Para conseguir essas coisas ele é capaz de tudo: de amar e odiar, de cantar e amaldiçoar, de tocar e matar, de construir e destruir. E as cidades passam a fazer parte integrante nesta história. Eis a cidade de Babel e sua torre. A cidade de Babel é um símbolo negativo da relação entre o ser humano e Deus.
Babel é justamente o contrário daquilo que Deus intencionava para a cidade. Babel é a cidade-mãe da secularização. Sua proposta era viver uma vida onde o centro de todas as coisas não era Deus, mas eles mesmos, querendo tornar seus nomes célebres: Gn. 11. 4. Eles no centro da cidade e Deus na periferia. Um culto à eles mesmos.
• Gn. 11 • 4 • Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda terra.
5 • Então desceu Deus para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificaram;
6 • e o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem.
Isto é apenas o começo, agora não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer.
• Gn. 11 • 7 • Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro. Destarte, o Senhor os dispersou dali para a superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade
Deus toma essa atitude por entender que isto era apenas o começo. Ou seja, muito mais estava por vir por serem unidos e falarem a mesma língua.
Deus sempre se mostrou preocupado com inclusividade e não a exclusividade dos povos.
Caminha assim, a cidade de Babel com sua torre que era uma candidata dominadora, egocêntrica, de superioridade cultural (mesma língua). Deus percebe isso e os dispersa.
A cidade que Deus deseja é inclusiva, multi-cultural-linguística e étnica.
O único a ser adorado é Ele e não a torre. Desde cedo, Deus já nos dava pistas que o evangelho iria ser pregado,proclamado e vivido num contexto multicultural. Que o desafio do evangelho iria ser transcultural ainda que dentro de uma mesma cidade, como são as grandes cidades do mundo de hoje.
Em Babel, eles estavam buscando a unidade em uniformidade, um povo vivendo juntos em uma grande cidade, tendo uma torre e uma mesma língua em comum. Porém, em nossas cidades de hoje nós celebramos a unidade em diversidade.
A diversidade das línguas, das culturas, das classes sociais, das festas, etc... ou seja, um mundo multicultural. Se nós como igreja queremos falar relevantemente para este mundo, precisamos aprender a conviver e a cruzar essas barreiras culturais e raciais.
A uniformidade da cidade de Babel precisa dar lugar a rica diversidade da Nova Jerusalém. Na Revelação do Apocalipse as nações marcharão para a cidade, cada povo e cultura trarão seus dons e talentos em frente de toda a humanidade. Será uma festa das nações.
Nações que aparentemente foram destruídas no decorrer da história irão marchar para a Cidade de Deus, limpas e convertidas, trazendo sua glória para dentro dela.
Esta é a beleza do lindo significado da descrição que temos da Cidade de Deus com doze portões cada um feito de pérolas, paredes de jaspe e com doze fundações, cada uma com pedras preciosas diferentes, e as ruas pavimentadas com ouro – que rica diversidade que se une ao redor do trono de Deus.
Muitas das nossas cidades de hoje ilustram a diversidade da cidade moderna.
No final dos tempos, os tesouros das nações serão redimidos e encontrará seu lugar na Cidade de Deus, a nova Jerusalém. Seria suspeito afirmar que a Babel se tornará a nova Jerusalém?
A cidade de Satanás e torna na Cidade de Deus. O exclusivo, uniforme, pecadora cidade com sua alta torre, se transforma agora na cidade aberta, diversa, que recepciona com seus portões abertos dia e noite.
E nós vivemos na cidade do meio depois do Jardim do Éden e antes da Nova Jerusalém que é a velha Jerusalém.
O tempo na cidade ambígua, esta misturado entre o bem e o mal, certo e errado, belo e horrível, riqueza e pobreza, fraco e forte, poderoso e o sem voz.
Uma cidade que os alegra é também a cidade cheia de situações que nos causa pavores.
É um lugar ambíguo. E na verdade não sabemos muito que fazer com isto
Conclusão:
Deus vê a cidade com os olhos do amor, como se sendo sua, com olhos compassivos e justos, e com olhos que busca e redime sua criação. Se estamos interconectados, interligados, Igreja e Cidade, não somos entidades separadas, por isto temos que mudar nossa postura em relação a cidade, precisamos aprender a ver a cidade com os olhos de Cristo, e não com frieza e indiferença.
As portas das nossas igrejas devem olhar para cidade e a cidade deve olhar para as portas das nossas igrejas.
O bem estar nosso depende também do bem estar da cidade. Na prosperidade da cidade seremos prósperos também.
Deus continua procurando a sua criatura, reclamando dela uma resposta a sua pergunta: Onde estas? Esta pergunta também serve para a igreja: onde está a minha Igreja?
Bibliografia:
•Beozzo, José Oscar, Org. Curso de Verão Ano VIII ("A Cidade, um Desafio para as Igrejas e Movimentos Populares"). São Paulo, SP: Paulus, 1994.
•Bobsin, Oneide, Org. Desafios urbanos à igreja. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1995.
•Lim, David S. “The City in the Bible”. In Evangelical Review of Theology. 12(1):138-156. The Paternoster Press, 1988.
Em Cristo.
Revisão Julho 2016
Shalon.
Por Cornelio A.Dias
"Feito perfeito, é imperfeito; como criação, o meu eu; natureza humana! C. A. Dias.
A igreja e a realidade urbana: do Teologo Cornelio A.Dias está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Não Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional. Baseado no trabalho disponível em "https://oportaldateologia.no.comunidades.net/a-igreja-e-a-realidade-urbana". Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em https://oportaldateologia.no.comunidades.net/.